Festival de Veneza, mais antigo evento de cinema da Europa, flerta com serviço de streaming
Lady Gaga cantando modinhas de amor; Dakota Johnson fugindo de encostos das trevas; Mel Gibson de distintivo no peito; Joaquin Phoenix em caçada a Jake Gyllenhaal no Oeste selvagem; Ryan Gosling simbolizando a corrida dos EUA pela conquista do espaço. Tudo isso se apresenta na lista dos pratos principais do cardápio do 75º Festival de Veneza, que começa nesta quarta-feira. Quem avalia o menu tem a sensação de estar em Hollywood e não no Lido, região Nordeste da Itália, onde experiências narrativas mais interessadas em bandeiras políticas do que em milhões de dólares, como “O círculo”, de Jafar Panahi; “Eles não usam black-tie” (1981), de Leon Hirszman; e “A batalha de Argel” (1966), de Gillo Pontecorvo; foram coroadas com troféus e holofotes no passado.
Cansado do rótulo de decadente, que recebeu na década passada, pela dificuldade de abrir portas às novas vozes autorais das estéticas digitais e experimentais, o mais antigo dos grandes eventos cinematográficos da Europa resolveu se reciclar e se repaginar num flerte com a indústria hollywoodiana e com a ala mais rica do cinema independente. O que ofereceu a elas: ser uma vitrine para potenciais ganhadores do Oscar. E uma vitrine de prestígio. Não por acaso, filmes recentes que se banharam no ouro da cobiçada estatueta nasceram por lá: “Birdman” (2014), de Alejandro González Iñárritu, “La La Land – Cantando estações” (2016), de Demian Chazelle, e o recente “A forma da água” (2017), de Guillermo Del Toro.
Este ano, não será diferente, a começar da escolha de “O primeiro homem” - reconstituição da ida de Neil Armstrong à Lua, em 1969, com Ryan Gosling no papel do astronauta e Chazelle assinando a direção – para inaugurar o evento, que abre suas portas no dia 29 de agosto e segue até 8 de setembro, com a entrega do Leão de Ouro e a projeção fora de concurso do thriller “Driven”. Neste filme final, também há um perfume de Hollywood: o protagonista é o comediante campeão de bilheteria Jason Sudeikis (“A família do bagulho”). Vai até filme de terror concorrendo: a esperada refilmagem do cult “Surpiria” (1977), do mestre italiano Dario Argento, revisitado agora por Luca Guadagnino (de “Me chame pelo seu nome”), com Dakota Johnson e Tilda Swinton acossadas por fantasmas, sexo e sangue.
Seleção ganha tom mais pop este ano
O diferencial da vez, na seleção arquitetada sob a curadoria do diretor artístico Alberto Barbero, é a presença da Netflix nas mais variadas latitudes, dentro e fora da competição. Há seis projetos de peso, na forma de longa-metragem, da grife que nos deu séries de sucesso como “Narcos” e “Jessica Jones”. O mais esperado deles é o drama “Roma”, de Alfonso Cuarón (laureado com o Oscar em 2014 pelo fenômeno de bilheteria espacial “Gravidade”), cujo trailer, num preto e branco estonteante, anda encantando internautas.
Na sequência, no bando dos seis da Netflix, também espera-se muito do faroeste em episódios “The ballad of Buster Scruggs”, projeto dos irmãos Joel e Ethan Coen pensado como seriado e, depois, vertido em longa. Tem ainda “July 22”, de Paul Greengrass (artesão da franquia “Jason Bourne”) sobre atentados terroristas na Noruega; o drama “Sulla mia pelle”, de Alessio Cremonini; “The other side of the wind”, épico inacabado do gênio Orson Welles (1915-1985); e, por fim, o documentário “They’ll love me when I’m dead”, de Morgan Neville, sobre Welles e seu legado.
Essa presença da Netflix dá a Veneza um tom mais pop, mais midiático e mais comercial, porém não ofusca a leva de títulos dos grandes estúdios de olho em prêmios venezianos e nas futuras láureas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que dá o Oscar. Não por acaso, caberá ao ganhador do Leão dourado de 2017, o mexicano Guillermo Del Toro, escolher quem vai ganhar os prêmios deste ano, no comando de um júri multinacional, que agrega a taiwanesa Sylvia Chang (atriz e cineasta), a dinamarquesa Tryne Dyrholm (estrela do festejado drama “Nico, 1988, que estreia quinta agora no Brasil); a francesa Nicole Garcia (cineasta); o italiano Paolo Genovese (diretor); a polonesa Malgorzata Szumowska (uma das maiores realizadoras da Europa hoje); o neozelandês Taika Waititi (que dirigiu “Thor Ragnarok”); o austríaco Christoph Waltz (imortalizado na pele do nazista Hans Landa de “Bastardos Inglórios”) e a inglesa Naomi Watts (uma das atrizes mais prolíficas da atualidade).
E, mesmo entre os filmes não americanos que eles vão avaliar, há um certo perfume de Oscar ou de cinemão, como se vê no bangue-bangue “The Sisters Brothers”, do francês Jacques Audiard, com John C. Reilly, Joaquin Phoenix e Jake Gyllenhaal, ou no drama de época “Sunset”, do húngaro László Nemes, aclamado por “O filho de Saul” (2015). Também da França chega “Non-fiction”, no qual Oliver Assayas (“Depois de maio”), põe Juliette Binoche numa trama ligada romântica ao mercado editorial. A América Latina disputa o Leão com “Acusada”, coprodução entre México e Argentina, com Gael García Bernal.
Para o Brasil, foram reservadas três vagas nobres em Veneza: “Deslembro”, de Flávia Castro, é uma das atrações mais esperadas da mostra competitiva Horizontes; “Domingo”, de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa, vai disputar na mostra Venice Days; e “Humberto Mauro”, de André de Mauro, vai levar as memórias audiovisuais do mítico cineasta mineiro, diretor de “A velha a fiar” (1964), à seção Venice Classics Documentary.
Entre os homenageados do ano, Veneza rende tributos à atriz inglesa Vanessa Redgrave, ao montador americano Bob Murawski (de “Guerra ao terror”), responsável pela reedição do longa inacabado de Welles (“The other side of the wind”) e a dois diretores, o canadense David Cronenberg (“A mosca”) e o chinês Zhang Yimou (de “Lanternas vermelhas”), que lança por lá a aventura “Shadow”, já de olho advinha no quê? No Oscar. Essa é Veneza 2018.
* Rodrigo Fonseca é roteirista e crítico
