Maioridade penal: o que ainda nos põe em xeque

Por Mônica Francisco

São muitas reações contra a redução da maioridade penal. A mobilização dos estudantes para  estar presencialmente em Brasília e demonstrar o que parte da juventude brasileira, que nos últimos dez anos conseguiu acessar os bancos das universidades e ocupar espaços vetados a eles por muito tempo, é uma delas.

Há ainda setores da igreja católica, protestante, evangélicos, estudiosos, educadores, enfim, diversos setores da sociedade, expondo suas reações em repúdio à tal emenda constitucional, que se coloca como um dos maiores retrocessos que nossa sociedade sofrerá se aprovada for.

Agora, tudo isso nos põe em xeque, nos provoca a retomar parte fundamental do que nos constitui como sociedade. Sim, a tal sociedade brasileira. Nosso passado escravagista, não passado a limpo, não revisto, não discutido com todos os sentimentos necessários para que passemos ao período de cura dessa ferida, que produziu uma espécie de torpor coletivo de uma parcela da sociedade em relação aos descendentes de povos escravizados.

Ao longo dos anos, essa parcela da população vem sendo aviltada em seus direitos. É a maioria em todas as situações de abandono, escassez , encarceramento e morte. Tudo isso, resultado da trama perversa de um racismo institucionalizado, capturado da sociedade e transferido tristemente para a máquina institucional, e vem causando estragos de longa data.

Primeiro a utilização de estratégia de deixar à própria sorte no dia 14 de maio de 1888, os pretos forros, para que não tendo destino certo e nem política pública, política de estado que os permitisse fazer a transição de fato e apropriarem-se do novo status de cidadão, logo se acabassem e minguassem, produzindo um aniquilamento das lembranças de sua presença na construção do país, como tiveram êxito as ações de aniquilamento e invisibilização dos negros e negras em alguns países da América Latina.

Em seguida a impossibilidade de acesso à terra, à moradia, à educação formal, e consequentemente à postos de trabalho melhores, ou seja à um pleno exercício da sua  cidadania, e tratados como cidadãos de segunda classe.

O refinamento destas práticas e a refratariedade de parte da sociedade às questões relativas à essa parcela da população, negra e moradora das áreas pobres da cidade, vem se mostrando mais agressivas nos últimos anos, em que coincidentemente, essa mesma parcela vai circulando, ocupando e se apropriando de espaços que lhes eram vedados, não por força de decretos e leis segregacionistas, mas por força do racismo tácito internalizado e culturalmente aceito, como no exemplo dos elevadores e nas entradas de serviço.

O corpo negro, masculino ou feminino, adulto, jovem ou ainda em tenra idade, fora dos lugares talhados cultural e silenciosamente para eles, sua apropriação da cidadania que não lhes é franqueada, mas que vão tomando-a por força de sua luta, não poderia passar incólume.

E é na punição de seus jovens que essa ação se torna mais aterradora e devastadora. Não é travar o presente que interessa, interessa não permitir um futuro. Escrevo esse artigo, olhando na parede uma linda gravura e a frase de Clarice Lispector onde se lê que "Viver ultrapassa todo o entendimento", e a frase me faz lembrar mais uma vez a inscrição anônima em um prédio na Praça Sãenz Peña na Tijuca que diz que "Sobreviver Cansa".

"A nossa luta é todo dia. Favela é cidade. Não aos Autos de

Resistência, à GENTRIFICAÇÃO, à REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL e ao RACISMO, ao RACISMO INSTITUCIONAL, ao VOTO OBRIGATÓRIO e à REMOÇÃO!"

*Membro da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Consultora na ONG ASPLANDE.(Twitter/@ MncaSFrancisco)