Mangueira voa alto no carnaval e reescreve a história do Brasil

Por

Hilde

Quem ouve o samba-enredo da Mangueira deste carnaval se emociona. Ele não podia ser mais bonito: no tema escolhido, na melodia e na letra. Um enredo que fala fundo aos corações e sacode a névoa que distorce a história real de nosso povo, revelando quem são nossos mais legítimos e combativos Heróis. Leandro Vieira, o jovem e talentoso carnavalesco da escola, faz o seu voo mais ousado, reescrevendo, através do samba, a História do Brasil, e colocando tudo e todos em seus devidos lugares. Leia abaixo a entrevista dada por Leandro, no barracão da escola, ao repórter JOÃO FRANCISCO WERNECK.

Certas responsabilidades não são fáceis. Ser o mais novo carnavalesco da Sapucaí não é tarefa para um qualquer. Maturidade para aguentar as críticas, talento, criatividade e amor pelo ofício são fundamentais para suportar a pressão por promover o maior e mais concorrido show da terra. Assim é o desafio enfrentado por Leandro Vieira, 32 anos, o senhor da última palavra nos desfiles da Mangueira desde 2016, das mais tradicionais escolas de samba do país.

Quando chegamos ao barracão, na Cidade do Samba, encontramos um tranquilo carnavalesco, apesar de estar a menos de um mês do grande desfile. Com a calma de um monge tibetano, caminhou entre alguns dos carros alegóricos da Mangueira, até a sua sala, Leandro parou para ajustar detalhes, fazer recomendações ou incentivar a sua equipe. Nada de gritarias ou confusão. É visível a liderança deste carioca do Jardim América ante os componentes da Escola, que se preparam para levar à Sapucaí a história não contada dos muitos heróis brasileiros.

Nessa entrevista, o carnavalesco revela não apenas os detalhes do desfile, que promete ser esplendoroso, como também de toda a sua trajetória profissional, das dificuldades, felicidades e da polêmica prisão do ex-presidente da verde e rosa, Chiquinho da Mangueira.

Quando começou a se interessar pelo Carnaval?

Com o carnaval de rua do subúrbio, os bate-bolas e, mais à frente, com meu gosto pelo samba: as feijoadas, as rodas, o universo das Escolas e a intimidade das quadras. Foi isso que me levou a ser ritmista na bateria da Portela por 10 anos. Meu interesse pelo carnaval vem de onde o samba é feito, de dentro das quadras.

Seu ingresso na EBA (Escola de Belas Artes), na UFRJ, teve alguma relação com a decisão de ser carnavalesco?

Eu sempre quis participar dos desfiles como folião, mas nunca havia pensado em ser carnavalesco. A EBA era a minha opção inicial para seguir a carreira de artes. Pensei em ser artista plástico, mas fazer arte no Brasil não é fácil. Acontece que a história do samba tem uma intimidade com a Escola de Belas Artes. Há uma tradição, devido a Fernando Pamplona, Rosa Magalhães, Maria Augusta Como eu desenhava e pintava - sou formado em pintura - fui me oferecer para trabalhar nas Escolas de Samba. O primeiro barracão em que fui foi o da Mangueira, que não dava oportunidades para inexperientes. O seguinte, ao lado, era o da Grande Rio. Fui contratado, e o responsável pelo Carnaval era "apenas" o João Trinta.

O que há para lembrar deste Carnaval?

Eu achei tudo muito ruim. Eu ainda não fazia criação, mas fazia reprodução, algo simplesmente manual. Foi o meu primeiro contato com a figura do carnavalesco. E o João era uma figura grosseira. Aquilo me deixou assustado.

E como você passou a integrar uma equipe de criação?

Eu precisava de dinheiro, de trabalho, e conhecia o mestre da bateria da Portela, Nilo Sérgio. Então, entreguei a ele alguns desenhos. Cahê Rodrigues, o carnavalesco da Portela, gostou do meu trabalho, e me chamou. Foi a primeira vez em que eu fiz parte de uma equipe de criação de carnaval. No ano seguinte, a gente saiu da Portela, e foi pra Grande Rio. Foi ali que eu aprendi tudo o que eu sei hoje. Foi uma relação de trabalho que durou nove anos. Uma verdadeira formação. Sou formado artista pela EBA, mas carnavalesco pelos bastidores dos desfiles.

E a aproximação com a Mangueira, como aconteceu?

Era unânime o consenso de que eu levaria a escola ao fracasso. A ideia de um carnavalesco jovem demais, aos 29 anos, e inexperiente... Pato novo não dá mergulho fundo E a Mangueira estava numa situação muito ruim, quando o Chiquinho me convidou. Recebi aquilo com muita surpresa, e acho que eu fui um louco de aceitar aquele convite. Foram meses tomando "porrada", mas fiz uma Mangueira que ninguém esperava. Abri mão do verde-rosa, passei a utilizar fantasias distantes do conceito da escola, utilizei a nudez na comissão de frente E nós fomos campeões. Ser campeão em meio a tanto prejulgamento é uma grande satisfação. Mais do que parabéns, eu recebia pedidos de desculpas

Foi o desfile em homenagem à cantora Maria Bethânia. Como foi isso?

Foi especialíssimo A Mangueira estava uma situação muito ruim, havia amargado um nono lugar no último carnaval, e estava há alguns anos fora do desfile das campeãs. E a ideia de contratar um João Ninguém...

No ano passado, você desenvolveu um enredo crítico, questionando o corte de verba promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. A Mangueira receou alguma represália?

Na verdade, o problema não é o corte, é o aspecto cultural. O problema é a narrativa dele (do prefeito), em que o carnaval é o vilão. Isso é extremamente conservador e com uma carga religiosa profunda. O carnaval como profano é uma ideia extinta. Somos reconhecidos por promover a mais bela festa cultural do país. O Crivella traduz uma visão racista e preconceituosa do carnaval, da festa, da bunda de fora Nosso desfile em 2018 falou sobre diversidade, a pluralidade da rua, a religiosidade, enfim. Os meus carnavais, de alguma forma, eu busco dar a eles uma narrativa contínua. A perseguição religiosa eu tratei em 2017. Perseguição aos orixás. Hoje, o que mais causa medo é a liberdade. Liberdade para falar, comportar, fazer, agir. O carnaval é uma ameaça para essas pessoas.

Falando nesta liberdade, este ano a Escola reconta a História do Brasil. Como foi feito esse recorte?

Desde 2016, o meu interesse é olhar para o Brasil. E eu tenho essa atitude de combate contra o conservadorismo. O cenário conservador no Brasil, ainda mais em 2019, me aponta para o entendimento de que é preciso passar a limpo a História do Brasil, olhando para o que não foi consagrado pelos livros. Nossa intenção não é contar 500 anos de História, mas falar sobre grupos que ficaram à margem dela. Esses grupos são: negros, índios e pobres. Nós vamos dar protagonismo aos excluídos. Vamos falar de índios, do massacre dos bandeirantes, dos grandes nomes quilombolas. É a negação deste protagonismo que nos faz uma sociedade "ninada". Por isso, eu batizo o enredo da Mangueira como "história para ninar gente grande".

E a vereadora Marielle Franco, como será a homenagem?

Iremos falar de representatividade. Eu falo por uma escola eminentemente pobre e negra. A escola tem que tomar conhecimento da história de homens e mulheres negras pobres. A Marielle é representatividade. Estamos falando de uma mulher negra, moradora da Maré, que até os 18 anos foi camelô. Depois ela fez faculdade e mestrado. Ainda é preciso dizer para os negros do Brasil que eles podem ir a qualquer lugar.

E a presença de Hildegard Angel?

O enredo passa por essas páginas da História do Brasil. Uma sociedade que não conhece o seu passado está fadada a cometer os mesmos erros. É por isso que há tantos brasileiros saudosos da ditadura. Essas pessoas não têm o entendimento da História, porque a nossa foi mal contada. A anistia ampla e irrestrita não puniu ninguém. A falta de esclarecimento faz com que, diferente de outros países da América Latina, o Brasil não tenha o entendimento do que foi a ditadura militar. Nosso samba exalta "quem foi de aço nos anos de chumbo", com o entendimento de que esse período foi o auge da repressão. É neste contexto que faço questão de relembrar as lutas de pessoas que foram opositoras a esse regime. É neste contexto que entram as figuras do Stuart e da Zuzu, assim com a Hilde, que significa a preservação da memória de uma luta e de mortes ainda não esclarecidas.

Quando você faz um carnaval, qual é o seu maior objetivo? Prêmios, título da Liesa, Estandarte de Ouro?

Para mim, só vale a pena se o carnaval dialoga com a comunidade. É possível ganhar perdendo. Eu tenho orgulho daquilo que proponho.

Com a prisão de Chiquinho da Mangueira, o desfile foi afetado de alguma forma?

Hoje, ele é ex-presidente. Ficamos um período sem comando. Mas o estatuto da escola foi respeitado, e nós seguimos tocando o projeto. O presidente hoje é o Aramis Santos, um cara que participa bastante. Mas o Chiquinho deixou um legado importante: a autonomia do carnavalesco. E a minha foi preservada.

CONTRARIADO COM a enxurrada de críticas à festa dos 50 anos de sua mulher, Donata, Nizan Guanaes cancelou o brunch de ontem, que encerraria o festival de três dias #Donata50. O local também seria polêmico: um terreiro de candomblé.