A longa jornada de Godot, portador de boas e más novas

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Por ÁLVARO CALDAS

Álvaro Caldas

Ao contrário do que se poderia esperar depois de tanto tempo decorrido, Godot, o misterioso personagem de Beckett, apareceu. Veio sozinho, caminhando ao anoitecer pela estrada vazia, até chegar ao pé da árvore em que se encontravam Vladimir e Estragon, que sonolentamente o aguardavam, deitados ao lado de uma fogueira. Deu boa noite, disse que estava chegando de Brasília e era portador de novidades.

Anunciou primeiro a boa nova. A infame escória que se enganalara nos galhos do poder nos últimos quatro anos, ocupando gabinetes dos palácios e dos órgãos públicos, será desalojada. Seu chefe mistificador perdeu a eleição e a Constituição será respeitada. Os habitantes deste infausto país poderão dar adeus à doença do bolsonarismo, que se juntara à do Covid. De agora em, diante caras como as de Michelle e Damares, um tal de Carluxo Corleone e o general Heleno, entre outros, não serão mais vistas nas dependências dos palácios.

A má notícia é que depois desta imersão na lama, que levou ao desmonte do Estado, há outro perigo mais devastador e profundo, uma praga que cresceu vertiginosamente neste período. O contingente de brasileiros contaminados por essa visão messiânica e autoritária, carregada de ódio e de frustração. Parte considerável da sociedade passou a adotar os trejeitos e o comportamento extremista de seu mentor, dividindo perigosamente o país ao meio.

Tudo indica que Godot passou boa parte de seu desaparecimento vivendo clandestino na capital brasileira. Pôde observar como Bolsonaro, com suas mentiras afrontosas, sabotou os valores da democracia, distribuiu armas para a população, fechou órgãos de controle, interferiu na lógica dos direitos sociais, colocando em seu lugar o clientelismo e a chantagem. Radicalizou o conservadorismo religioso e atacou o filósofo comunista italiano Gramsci, para atingir a cultura.

Seu secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, plagiou numa solenidade o discurso do ministro da Propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical. Goebbels havia afirmado que a arte alemã, sob Adolf Hitler, seria “heroica e imperativa”. Alvim afirmou em seu discurso filmado que a arte brasileira da era Bolsonaro será “heroica e imperativa”. Justificou a semelhança entre as frases como uma coincidência retórica.

O misterioso personagem de Beckett fez uma pausa. Olhou a vastidão do espaço e contemplou a lua. Perguntou a seus companheiros como faziam para viver naquele imenso desamparo, para lhes dizer com toda certeza possível que o Brasil mudou. Aquele país que vocês conheceram no exílio, desigual e elitista, com um misto de ingenuidade e esperança, não existe mais. Aquelas pessoas que andavam pelas ruas exibindo a sensualidade à flor da pele de seus corpos, não estão mais lá. Há muita miséria e pobreza nas ruas. O Brasil vive um clima de guerra. Recuperar a esperança e o otimismo com o futuro será difícil. Trabalho pesado para o vencedor, o operário Lula.

À sombra de um capitão expulso do Exército, de visão extremista, vicejou uma população ressentida e pronta para atos de violência. Acirraram-se os preconceitos, a discriminação e a desigualdade. Mulheres, negros, homossexuais, nordestinos são considerados por ele inferiores. O velho modelo escravocrata ganhou fôlego e criou novas raízes, apoiado por uma parcela de brasileiros bem maior do que se imaginava.

Lá vem ele de novo com suas amarguras, ergueu a voz Estragon, um dos dois personagens desta fábula em dois atos criada pelo irlandês Samuel Beckett, sob o título de Esperando Godot, obra máxima do teatro do absurdo. A verdade é que até aquele momento nenhum dos dois acreditava mais que ele viria a aparecer. Estavam cansados de esperar. Como registrou Estragon:

“Não faço idéia de há quanto tempo estou aqui, Sei que já era bem velho antes de vir para cá. Me sinto um octogenário, mas não posso provar, Faz uma eternidade que perdi a conta dos anos que tenho. Sei o ano em que nasci, mas não sei o ano em que vim parar aqui”.

Da última vez em que os dois personagens conversaram, antes da chegada de Godot, Vladimir perguntou a Estragon o que eles deveriam fazer. Estragon sugeriu que deveriam continuar esperando, ou então que se enforcassem na árvore. A discussão tomou a direção de quem ia se enforcar primeiro.
Estragon: E se a gente se enforcasse?

 

Vladimir: (excitado) um jeito de ter ereção.

Estragon: A forca, sem demora!

Vladimir: Num galho? (aproximam-se da árvore, olhar atento): Não dá para confiar.

Estragon: Podemos tentar,

Vladimir: Tente.

Estragon: Depois de você

 

Depois do milagre do Godot entrando em cena numa noite de lua cheia, acho melhor marcarmos um novo encontro para daqui a 4 anos, em Brasília, disse Vladimir. Antes que ele desapareça de novo. Poderemos conferir se o governo do Lula, com sua inimaginável frente pela democracia, levando junto a Marina e a Simone, deu certo. O metalúrgico salvou o país da desgraça de um governo autoritário de extrema direita. Venceu a eleição graças aos votos que vieram das veredas do grande sertão e dos retirantes nordestinos, que passam fome em suas vidas secas.

Antes de dar boa noite, Godot esfregou os olhos e previu o definhamento do capitão miliciano. É um sujeito tosco, frio, sem carisma e sem caráter. Fora do poder, politicamente inexpressivo, deputado medíocre. Rejeitado no cenário internacional. Vai ter que se virar nos tribunais para não ser preso. Sua liderança ficará confinada a grupos de milicianos e extremistas de direita. “Um fica na historia, o outro é candidato ao lixo,” disse Estragon, acabando de estender sua manta no chão.

*Jornalista e escritor