O poder moderador

Por Gilberto Menezes Côrtes

Uma das virtudes deste pouco virtuoso ano de 2019 que vai se findando, foi a reafirmação do papel do Parlamento no mundo. Salvo os regimes ditatoriais e autoritários, que não ousam dizer o seu nome, nos países onde sobrevive um mínimo de regime democrático, o Parlamento ressurgiu como o poder moderador, capaz de pôr freio nos ímpetos do chefe da nação, seja ele rei, um déspota, um autocrata, um presidente eleito ou um primeiro-ministro.

Na semana que passou, nos Estados Unidos, a maioria democrata na Câmara deu um cartão amarelo ao presidente Donald Trump por sua atuação, pouco ortodoxa, para dizer o mínimo, pressionando o governo da Ucrânia a levantar supostas irregularidades na atuação empresarial do filho do ex-vice-presidente Joe Biden, possível candidato dos democratas em 2020, quando tentará a reeleição. A moeda de troca seria a liberação de ajuda de US$ 391 milhões ao país. A maioria republicana no Senado pode vir a evitar que o cartão amarelo vire um processo de impeachment por ferir a Constituição norte-americana. Mas a advertência está feita: na democracia há leis e limites, inclusive de sonegação de dados fiscais..

No Brasil, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) atua como importante poder moderador para refrear ímpetos ditatoriais e autocráticos do presidente Jair Bolsonaro. Vários projetos emanados da presidência da República foram suavizados pelo Congresso, em pontos críticos no crivo das Comissões de Constituição e Justiça da Câmara e do Senado. Na reforma da Previdência, sob a liderança mobilizadora de Maia, a Câmara barrou a redução drástica do Benefício de Prestação Continuada, da aposentadoria rural e a introdução do regime de capitalização no INSS. O Senado, por sua vez, aprovou pacote para reorganizar a previdência de estados e municípios. Os dois pacotes podem gerar economia de R$ 1,3 trilhão em 10 anos

Pena que ambas as Câmaras tenham deixado de lado o princípio da isonomia ao aprovar, quase sem vetos, a proposta de reforma da Previdência dos militares das forças armadas, extensiva às polícias militares (estaduais e municipais) e aos bombeiros. A aposentadoria integral, com o último salário da ativa e ajuda generosa na passagem para a reserva, configura a máxima de um peso e duas medidas (dois pesos e duas medidas é o normal), em total anormalidade na comparação com os trabalhadores privados e demais servidores públicos. O que seria um projeto capaz de economizar R$ 97,3 bilhões em 10 anos (conforme apresentado em março), virou um Cavalo de Troia que promoveu reajustes em geral nas remunerações e soldos por funções, resultando em gastos de R$ 86,85 bilhões. No frigir dos ovos, a economia em 10 anos será de pífios R$ 10,5 bilhões.

Mas a Câmara dos Deputados, comandada por Maia, merece ser festejada por ter deixado caducar a Medida Provisória (MP) que mudava o sistema de multas do Código Nacional de Trânsito. Entre outras aberrações arquivadas, estão o fim do uso obrigatório de cadeirinhas para transporte de crianças até 4 anos, e a dispensa de exames toxicológicos em motoristas de caminhões e ônibus. Incorporadas, pela Constituição de 1988, como substitutivo dos Decretos-Leis do regime militar, as MPs têm força de lei. Mas precisam ser referendados pela Câmara em 60 dias, com prorrogação de mais 60. Ao fim de 120 dias, se a matéria não for votada, ela caduca, mostrando a importância do compartilhamento da decisão para os representantes do povo.

Outro bom aviso prévio de Rodrigo Maia foi sua objeção à mudança na legislação que garante cota de 1% dos empregos a portadores de deficiência. Numa atitude que poderia ser comparada às medidas eugênicas adotadas pelo regime hitlerista, o governo propõe trocar o incentivo às empresas por doação ao governo, que poderia arrecadar até R$ 2,4 bilhões. E os portadores de deficiência ficariam ao léo, sem poder exercer sua capacidade laboral e intelectual?

O Parlamento surgiu no Reino Unido, em 1295. A reunião de representantes dos comerciantes, ricos burgueses e senhores de terras (lordes) deu origem à Câmara dos Lordes, como representação política dos cidadãos para dar um basta à irresponsabilidade fiscal do Rei Eduardo I. Envolvido em dispendiosas campanhas militares, o Rei não parava de elevar impostos para custeá-las e manter as mordomias reais.

Nos regimes constitucionais de funcionamento pleno do Estado de Direito, essa reunião ou assembleia (termo que se aplica a um condomínio quanto conjunto de acionistas de uma empresa, trabalhadores ou a representação de moradores), para as quais os representantes são eleitos em pleitos transparentes e regulares, tem a função de legislar (criando leis e normas jurídicas), representar a população governada e fiscalizar os atos do Poder Executivo, sob vários nomes e desenhos.

O Poder Legislativo pode ser formado por uma ou mais câmaras, como no Brasil, EUA, Argentina ou Rússia, países onde se apresenta como Congresso bicameral. Aqui, a Câmara legisla e fiscaliza atos dos Executivo, como Medidas Provisórias, por exemplo. O Senado, representa os Estados e tem o poder de processar e julgar crimes de responsabilidade do presidente da República, do vice, dos ministros do Supremo Tribunal Federal, dos membros do Conselho de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, do Procurador-Geral da República, do Advogado-Geral da União, ministros de Estado e Comandantes das Forças Armadas.

Cabe ao Senado também aprovar indicações do presidente para os tribunais superiores, a PGR, a AGU, a presidência e diretoria do Banco Central e outros órgãos da administração e representações diplomáticas no exterior. Todos precisam passar por sabatina em comissão especial do Senado e só depois de aprovação prévia na Comissão, os nomes são submetidos aos 81 votos no Plenário. Foi por temer derrota na Comissão do filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (então PSL-SP), que o pai, Jair, desistiu da nomeação para a embaixada do Brasil em Washington e o indicou para assumir a liderança do governo na Câmara. Assim, o ex-futuro embaixador evitou o vexame de ser atropelado pelo “amigo” Trump com a recente taxação sobre o aço e o alumínio exportados pelo Brasil para o Tio Sam.

Em suas andanças pelo mundo, Bolsonaro já topou com vários tipos de Parlamento. No Japão imperial tem o nome de Dieta. Na Europa, mesmo onde há monarquia (caso do Reino Unido, Espanha, Países Baixos, Suécia, Bélgica e Noruega, para ficar nos maiores), o Parlamento (Corte, na Espanha) tem vez e voz, como sentiram os últimos primeiros-ministros britânicos na polêmica questão do Brexit, aprovado por ínfima maioria, em referendo manipulado, com nítido arrependimento posterior da população, que clama por uma volta atrás honrosa, mas menos destruidora que a saída da União Europeia.

Há que se respeitar os poderes. Mesma da Rússia de Wladimir Putin, onde, após o fim da URSS, em 1993, prevalece o regime bicameral, da Duma, com Câmaras baixa e alta. Talvez, Bolsonaro tenha invejado o colega chinês Xi Jiping, que governa com plenos poderes referendados pelo Congresso Nacional do Povo. Mas um Congresso de partido único e ordem unida de comando não pode ser tratado como Parlamento. Em maio, Bolsonaro desafiou Rodrigo Maia com uma caneta BIC azul “Com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, eu tenho o poder de fazer decreto". A história ensinou que o jogo democrático não pode ser personalista. O cumprimento do ritual democrático é impessoal.