Crime de lesa-pátria nas telecomunicações

Senado aprova em discussão restrita mudança da Lei Geral de Telecomunicções e Bolsonaro sanciona operação que pode transferir R$ 100 bilhões do patrimônio da União para operadoras de telefonia

Por Gilberto Menezes Côrtes

A compra da Oi pelas três teles será julgada pelo tribunal Cade na próxima quarta-feira

Enquanto milhões de brasileiros estão preocupados com a abertura do pré-sal, as companhias petrolíferas estrangeiras ou a liberação de terras índígenas, a exploração de garimpeiros e empresas de mineração na Amazônia e no Pantanal, um crime de lesa-pátria foi gestado em tramitação terminativa (em discussão fechada) no Senado, à sombra da reforma da Previdência, e aprovado pelo presidente Jair Bolsonaro. A publicação no Diário Oficial da União de sexta-feira (4 de outubro) da mudança da Lei Geral de Telecomunicações (LGT) transformou as antigas concessões em outorga, o que pode significar a doação de cerca de R$ 100 bilhões do patrimônio da União às operadoras de telefonia fixa.

O regime de exploração das telecomunicações no Brasil foi criado em 1997 com a LGT, que estabeleceu o regime de concessão para a exploração dos serviços de telecomunicações em telefonia fixa a média e longa distância (DDD e DDI) e de banda larga, além da telefonia móvel. A LGT foi o marco que permitiu lotear as concessões de telefonia fixa em várias regiões do país, no leilão de privatização das operadoras da antiga Telebras, em junho de 1998. 

Nesses 21 anos de privatização, o mapa original das concessões mudou muito. Na telefonia fixa e de longa distância foram leiloadas as concessões de São Paulo (estado mais rico e de maior população do Brasil), vencida com ágio recorde pela espanhola Telefônica. A concessão do Sul e Centro-Oeste do Brasil foi arrematada, também com ágio, pelo consórcio Brasil Telecom, que tinha a italiana TIM e sócios brasileiros, entre eles Daniel Dantas, do Opportunity.

A comunicação à longa distância (DD e DDI, via satélite e estações rastreadoras (DDD, DDI), banda larga, redes de cabos por milhares de quilômetros, monopólio exercido pela Embratel, que viabilizava a integração nacional dos canais de televisão foi vencida, com alto ágio, pela MCI Internacional (antiga WorldCom), depois comprada pelo bilionário mexicano Carlos Slim, um dos homens mais ricos do mundo.

Já a área da Tele-Norte-Leste, mais conhecida como Telemar (atual Oi), que abarcava os estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais e os estados do Norte e Nordeste, teve uma composição acionária confusa e foi arrematada sem ágio. Desde o começo, a Telemar, cujo grupo comprador chegou a ser apelidado de “telegangue”, se revelou o patinho feio entre as teles.

E as mudanças empresariais e tecnológicas nos sistemas mundiais de telefonia móvel logo se refletiram no Brasil. As oito regiões iniciais em que foram leiloadas as licenças de telefonia móveis (que aproveitava o espólio das antigas subsidiárias da Telebras), além da criação de oito empresas-espelhos) modelo também replicado nas quatro concessões de telefonia fixa e longa distância, tiveram todo o cenário alterado.

Na virada do século as fusões e incorporações de áreas de telefonia móvel projetavam o desenho atual. Há quatro operadoras em todo o país: a líder Vivo, a Claro (de Carlos Slim), a italiana TIM, que se desfez da posição na Brasil Telecom para se concentrar na telefonia móvel, e a Oi, operadora móvel criada pela Telemar, que depois adotou o nome para todo o grupo.

Em 2008, com apoio do governo petista, a Oi, que tinha como sócia a Portugal Telecom (terceira operadora europeia no Brasil), após se desfazer da parceria com a Vivo na telefonia móvel, foi autorizada a comprar a Brasil Telecom (na telefonia fixa e móvel), operação concluída em 2010. Até hoje essa fusão tem consequências, que se agravaram com a recuperação judicial da Oi, em dezembro de 2017.

As mudanças tecnológicas e a praticidade do celular fizeram a telefonia fixa estagnar e regredir no Brasil. A retirada dos orelhões nas grandes cidades é apenas a ponta do iceberg. No interior do país, sobretudo nas regiões montanhosas, onde as torres de telefonia móvel têm alcance limitado, há o pior dos mundos: nem telefonia móvel nem fixa.

A mudança ocorre num momento em que a telefonia celular vai dar um salto no mundo, com a criação da tecnologia 5G (no Brasil o máximo que se tem é a 4G, apesar do marketing de algumas operadoras de que operam 4,5G), sob a liderança da chinesa Huawey, alvo prioritário do presidente Donald Trump - por temer a perda da liderança dos Estados Unidos em área tão estratégica.

Mudanças tecnológicas pedem investimento contínuo

As mudanças em tecnologia exigem investimentos contínuos das operadoras para não perderem fatia do mercado. É a regra do jogo da competição recorrer à tecnologia de última geração para aumentar a eficiência e a produtividade. Quando o sistema Telebras foi privatizado uma central telefônica de telefonia fixa exigia pelo menos 20 mil metros quadrados de área. Hoje, graças à micro-tecnologia, tudo pode caber numa sala de 20 a 40 metros quadrados.

Há, como se vê, um enorme patrimônio imobiliário que estava ocioso em mãos das operadoras, mas pertenciam à União, que bem podia negociá-los para cobrir o rombo do Orçamento Geral da União. Essa exploração da telefonia é como uma concessão de estradas, que são exploradas pelos concessionários, durante um período contratual, mas continuam na posse dos atores públicos (União e estados). Imagina se a estrada, porto, aeroporto ou ferrovia, depois do fim da concessão, não voltasse ao controle da União...

No Rio de Janeiro, a Oi tem sede no Leblon, na Rua Humberto de Campos. E prédios de antigas estações e centrais telefônicas em vários bairros (só em Botafogo são dois grandes prédios na praia de Botafogo e na rua General Polidoro), No Centro, na Presidente Vargas, antiga sub-sede foi ocupada por uma universidade. Na Barra da Tijuca e bairros da Zona Norte há prédios e instalações.

A situação se multiplica pelos 5.500 municípios brasileiros, e se repete nas áreas da Telefônica, que inclui túneis e instalações subterrâneas que cortam a cidade de São Paulo. Analistas do Itaú ressaltaram os ganhos futuros das duas operadoras. Também vai engordar o cofrinho do dono da Embratel e da Claro, o bilionário mexicano Carlos Slim.

Prédios, torres, dutos e uma série de instalações construídas pelo patrimônio público durante várias décadas foram transferidos numa dupla canetada do Senado em 11 de setembro (a mudança original veio da Câmara em 2015, ainda no governo Dilma) e do presidente Jair Bolsonaro que sancionou a mudança e a entrega do patrimônio a grupos particulares bilionários na semana que passou sob o falacioso argumento levantado pelas operadoras em troca de compromissos de investimento de R$ 17 bilhões em infraestrutura. As teles terão de aplicar outros R$ 17 bilhões decorrentes de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por falta de cumprimento de compromissos anteriores, visando à criação de um mercado secundário de frequências de telefonia móvel. Em troca de R$ 17 bilhões que teriam de investir (além dos R$ 17 bilhões do TAC), as operadoras podem ganhar até R$ 100 bilhões.

A alegação de que precisavam de liberdade para gerir os ativos (que eram da União) é falaciosa porque quem não investir ficará pelo caminho. O que se deu foi a transferência de patrimônio, sem leilão ou licitação. O contrato de autorização dispensa a realização de concorrência pública - por meio de leilão ou licitação -, e poderá ser revogado pelo governo a qualquer momento, enquanto a concessão exige concorrência pública e não permite o rompimento unilateral.

Vencido pelo ministério da Infraestrutura, a pasta da Economia foi contra porque vai perder arrecadação o que pode ameaçar o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso porque o fim do recolhimento bianual de 2% sobre a receita bruta das concessionárias representaria uma perda de receita para União que não está prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Por coincidência, foi aprovado na mesma semana em que o Senado aprova, no primeiro turno, a proposta de reforma da Previdência que emagreceu a potência fiscal da reforma para R$ 735 bilhões, segundo os cálculos do Departamento Econômico do Itaú, ou 41,6% abaixo da meta inicial de R$ 1,253 trilhão.