Anistia impossível
Dalmo Dallari, Jornal do Brasil
RIO - Quando se tratar de crimes cometidos contra uma pessoa ou um grupo de pessoas, ou contra toda a coletividade, afrontando os direitos consagrados numa ordem jurídica nacional, é possível cogitar-se da hipótese de anistia para os criminosos. Deverá estar prevista na lei a possibilidade de anistia, sendo também legalmente fixados todos os requisitos para a concessão da anistia, indicando-se expressamente quais os órgãos e quais as autoridades públicas, que exercendo função de governo por mandato recebido do povo, poderão participar do processo de concessão da a anistia, livrando os criminosos de punição.
Como bem observa o eminente mestre do Direito Constitucional José Afonso da Silva, em sua obra Comentário Contextual à Constituição(São Paulo, Malheiros, 2005, pág.399), a concessão de anistia acarreta a extinção da punibilidade, ou seja, mantém-se o reconhecimento de que foi praticado um crime, mas por motivos de conveniência pública as autoridades legalmente autorizadas podem decidir que o criminoso não será punido. No caso do Brasil a concessão de anistia depende de lei federal, que deverá ser aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, conforme as regras estabelecidas no artigo 21, inciso XVII, da Constituição e no artigo 107, inciso II, do Código Penal.
Fixados esses pontos básicos, fica evidente a impossibilidade jurídica de concessão de anistia aos que tiverem praticado crimes contra a humanidade. Essa categoria de crimes foi reconhecida e proclamada por organizações internacionais em várias oportunidades, após a constatação das tremendas violências cometidas contra seres humanos durante a segunda guerra mundial.
Reconhecida essa categoria de crimes, foi evidenciado que eles podem ocorrer não só numa circunstância de guerra, mas também no interior dos Estados, pelas ações brutais e desumanas levadas a efeito por pessoas degeneradas, ambiciosas, prepotentes e intolerantes, que desprezam a Ética e o Direito e usam de extrema violência contra seres humanos, ofendendo sua integridade física e mental e sua dignidade, para atingir seus nefandos objetivos.
Merece especial referência um documento de extraordinária importância, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 26 de Novembro de 1968, que é a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade.
Reafirmando a repulsa absoluta a essa espécie de crimes e a convicção da humanidade de que não pode haver tolerância, e muito menos perdão, para criminosos dessa natureza, a ONU acrescentou que para eles não poderá existir prescrição, o que significa que os criminosos poderão e deverão ser punidos sempre que possível, não importa quanto tempo tenha decorrido desde a prática dos crimes.
Não é preciso mais para que se conclua, com absoluta segurança, que os crimes contra a humanidade não são passíveis de anistia. Com efeito, quando se trata de um crime contra a humanidade nenhum governo tem legitimidade para conceder anistia aos criminosos, pois a vítima é toda a humanidade e a ordem ofendida é a ordem universal, aí incluídos os preceitos éticos e jurídicos proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, só a humanidade, no seu todo, poderia conceder anistia nesses casos, livrando de punição os responsáveis, sendo absurdo jurídico pretender que uma lei nacional conceda anistia a quem praticou crimes contra a humanidade.
Dalmo Dallari é professor e jurista.
