Porto, porta, portal

Por Carlos Fernando Andrade*

Línguas latinas, às coisas, gênero impõem, mas não sei se entendemos nossa feminina arte diversamente “del arte” dos hispânicos. Ou se “La Mer”, que Piaf cantava, é o mesmo que quebra na praia de Caymmi. 

Rios, porém, seguem igualmente varonis após cruzarem a Tordesilhas linguística e, avançando sobre a desacreditada linha, por aqui lambem inúmeras cidades, inclusive as das bacias dos amazônicos Purus e Juruá, onde tenho trabalhado nas últimas semanas. Todas têm um porto: sua porta. Masculino e/ou feminino, gerando urbanização.

As cidades rodoviárias não costumam ter portas, já que a elas se chega de qualquer parte do território. Surgiriam portas se muralha houvesse. 

Se crescem, fluviais ou marítimas, com suas “hinterlands”, também passarão a ter inúmeras entradas terrestres, mas apenas para chegarem ao porto, a porta principal.  

Onde ficam as costas de uma cidade? No século 18 projetou-se uma muralha em torno do Rio, pois corsários coçaram as suas. Séculos depois, estudo de Lysia Bernardes mostra que o Rio, em 1964, sem muralhas, polarizava, além do seu estado, o Espírito Santo, grande parte de Minas, da Bahia e trechos do Vale do Paraíba paulista. Atualmente, talvez só alcance Juiz de Fora, e São Paulo é que puxa as demais cordas. Retração da área polarizada: reflexo... que retroalimenta a retração da cidade. 

Mas na Amazônia, a retração visível é a da floresta. Até há pouco impenetrável, restrita aos seringueiros que dela tiravam sustento e produziam riqueza alheia, que semeou cidades, que surpreendem.

A começar, por existirem, por serem desenhadas e, finalmente, pelo requinte. Tarauacá tem um teatro; Sena Madureira, enorme colégio; Rio Branco, que já se chamou Penápolis, foi projetada como Acrópole da hileia: o Palácio do Governador faz as vezes de Parthenon e as funções urbanas distribuídas ao redor de diferentes praças, como preconizava Aristóteles. Não se mistura comércio e democracia, ensinava o sábio. Prouvera-nos tê-lo escutado. 

As cidades acreanas surpreendem, ainda, pelo traçado xadrez das ruas, bastante largas. E aí começam os problemas, pois, como já vimos, calçadas não há, e as sucessivas administrações adoram asfalto e detestam árvores. Como é de se esperar o calor aumenta, onde sombra seria alento. Mas sombra não há, enquanto o solo é totalmente impermeabilizado. 

Além disso, reza a técnica, os lotes devem ser estreitos para baratear o custo da urbanização. Mas se nossas cidades não dispõem de infraestrutura nenhuma, o que é que se está barateando, verdadeiramente? 

Contudo, lotes estreitos: casa grudadas. Ventilação natural, que os índios ensinaram, foi-se... e pelos rios já não chega a brisa, só contrabandeada. 

Mas é onde está o porto, de onde parte escadaria, como em Xapuri, ou uma ladeira, pois a água é amazônica e seu nível varia enormemente na seca ou na alagação, como dizem aqui. Encimando-as, simbólicos portais marcam a chegada à civita. 

Nos tempos clássicos, as portas de uma cidade eram dedicadas a um deus. Aqui não se chega a isso. O deus católico, cada vez mais evangélico, chegou também de canoa, banindo para a floresta as divindades dos rios, e mesmo esses vão sendo enxotados pelas vacas que vão tomando tudo.

Por ironia, o crescimento das áreas de pastagem trouxe à luz mais de 400 estruturas arqueológicas, executadas por escavação e compactação do terreno, cujas paredes se estendem por vários metros, e que formam rigorosas figuras geométricas, daí o nome, geoglifos. Há algumas décadas, quando os deuses eram astronautas, chegaram a ser interpretados como mensagens aos ET que visitavam o Acre. 

Mesmo eles precisavam de portais.

Contudo, eram dispensados do tormento de ter que decorar Javari, Juruá, Purus...a insuportável margem direita do Rio Amazonas. 

A Negro e Trombetas, resumia-se a outra margem. 

A esquerda era bem mais simples. 

* Arquiteto urbanista DSc