A lei e os sentimentos

Por LUIZ GONZAGA BELLUZZO *

Na ressaca da derrota escabrosa do meu Palmeiras, vitimado por um juiz de futebol, entendi que deveria alargar meus horizontes. Assumi o risco de falar dos tormentos que afligem os magistrados incumbidos de aplicar a lei, sob os rigores da impessoalidade e independência, não obstante as pressões da opinião pública. 

Começo com a lei promulgada pelo regime nazista em 1935, que prescrevia que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’ popular”. No Mein Kampf, Hitler proclamava que a finalidade do Estado é preservar e promover uma comunidade fundada na igualdade física e psíquica de seus membros. 

Herbert Marcuse, autor do ensaio “O Estado e o Indivíduo no Nacional-Socialismo”, considerava a ordem liberal um grande avanço da humanidade. Sua emergência na história submeteu o exercício da soberania e do poder ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.  Mas Marcuse também procurou demonstrar que a ameaça do totalitarismo está sempre presente nos subterrâneos da sociedade moderna. Para ele, é permanente o risco de derrocada do Estado de Direito: os interesses de grupos privados, em competição desenfreada, tentam se apoderar diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

No regime nazista, o Estado foi apropriado pelo “movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade civil. Os tribunais passaram a decidir como supremos censores e sentinelas do “saudável sentimento popular”, definido a partir da legitimidade étnica dos cidadãos. A primeira vítima do populismo judiciário do nazismo foi o princípio da legalidade, com o esmaecimento das fronteiras entre o que é lícito e o que não é. Os cânones do Estado de Direito impõem aos titulares da prerrogativa de vigiar, julgar e punir o delicado mister de sopesar as relações entre a garantia dos direitos individuais, a publicidade dos atos praticados pela autoridade, a impessoalidade do procedimento persecutório e a cominação da pena. O consensus iuris é o reconhecimento dos cidadãos de que o direito, ou seja, o sistema de regras positivas emanadas dos Poderes do Estado, legitimado pelo sufrágio universal, é o único critério aceitável para punir quem se aventura à violação da norma abstrata.

 A instantaneidade dos tempos da web é estranha ao bom cumprimento da prestação jurisdicional. Não haverá julgamento justo sem o contraditório entre as partes, a exibição de provas, os depoimentos. A formação da convicção do juiz, qualquer estudante de Direito sabe, depende da argumentação das partes. 

Domenico Losurdo, filósofo italiano de grande prestígio, encara com horror a possibilidade de vitória dos grupos que veem no Direito e na formalidade do processo judicial obstáculos ao exercício da moral. Diz ele: “Estes protestos não são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à sua própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade”. Invocar a própria virtude, a honestidade ou os bons propósitos para contestar a impessoalidade e o “formalismo” da lei é a maior corrupção praticada contra a vida democrática. Montesquieu dizia que há insanidade na substituição da força da lei pela presunção de virtude autoalegada. 

O Judiciário era rápido e eficiente na União Soviética de Stalin ou na Alemanha de Hitler. Os processos terminavam sempre de forma previsível e o contraditório não passava de uma encenação. Tudo estava justificado pelas razões superiores do Reich de Mil Anos ou pelos imperativos da construção do socialismo.

* Economista