Entre os dias 16 e 18 de junho teve lugar, no Pontifício Colégio Internacional Mater Ecclesiae, em Roma, a 28ª Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para os Leigos, atualmente presidido pelo Cardeal Stanislaw Rylko, com o tema “Um dicastério para os leigos: entre a história e o futuro”. Tive a oportunidade de participar junto com outros cardeais, arcebispo, bispos, padres e leigos (consagrados, casados, solteiros).
A Assembleia ocorreu em um momento de mudanças, pois, no dia 4 de junho, o Papa Francisco aprovou ad experimentum um novo órgão da Santa Sé, que é o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. Ele, conforme o artigo 1 do Estatuto, “é competente em matérias que são de pertinência da Sé Apostólica para a promoção da vida e do apostolado dos fiéis leigos, para o cuidado pastoral da família e sua missão, segundo o desígnio de Deus e para a tutela e o apoio da vida humana”.
Com essa medida, a partir de 1º de setembro de 2016, os atuais Pontifícios Conselho para os Leigos e para a Família deixarão de existir, fundindo-se em um único organismo na Igreja. Certo é que o Pontifício Conselho para os Leigos é antigo, nasceu de uma ideia do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) a fim de atender a vocação e a missão do laicato no mundo todo há cinquenta anos, e agora, com a reforma desejada pelo Papa Francisco, os leigos terão um dicastério especial junto com outros temas afins.
Na Assembléia, falaram o Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos, Cardeal Stanislaw Rylko, sobre o tema “Há 50 anos caminhando com os fiéis leigos”; o Bispo de Fréjus-Toulon (França), Dom Dominique Rey, falou sobre o tema “Vocação e missão dos leigos à luz do Concílio Vaticano II”. Na parte da tarde do primeiro dia, a professora Pilar Río, docente na Pontifícia Universidade Santa Cruz, fez uma palestra intitulada “Os leigos católicos há cinquenta anos do Concílio Vaticano II”. Na sexta-feira, 17 de junho, o professor Fabrice Hadjadj, diretor do Instituto Europeu de Estudos Antropológicos ‘Philanthropos’ de Friburgo, Suíça, apresentou suas reflexões sobre o tema “Ser luz no mundo e sal da terra. Os leigos diante dos desafios de nossos tempos”.
Depois da palestra, todos os participantes da assembleia do Pontifício Conselho para os Leigos foram recebidos em audiência pelo Papa Francisco, no Vaticano. Ainda, na parte da tarde, o Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Cardeal Robert Sarah, falou sobre o tema “A formação dos fiéis leigos: desde a iniciação à maturidade cristã”.
Sábado, 18, último dia da Assembleia, contou com a presença do Bispo de Albano, Dom Marcello Semeraro, Secretário do grupo de cardeais chamados a auxiliar o Papa no processo de reforma da Cúria Romana, chamado C9, que na palestra intitulada “O Pontifício Conselho para os Leigos no limiar de uma nova etapa de sua história”, deu alguns esclarecimentos sobre o desenvolvimento futuro do organismo, além dos debates e apartes concedidos todos os dias do evento, conforme noticiou a Rádio Vaticano no dia 8 de junho último.
A temática desperta reflexão sobre três pontos que aparecem, em evidência, no nome e, portanto, nas atribuições do novo Dicastério: Leigos, Família e Vida. Olhando mais de perto, em linhas gerais, cada um deles, a fim de também ajudar o leitor a melhor entender esse novo momento de reforma da Cúria Romana, reforma que nada tem a ver com pontos de fé ou de moral, mas é meramente organizativo da Cúria Romana.
Notemos que o termo leigo, no seu sentido na Teologia da Igreja, designa um povo especial que pertence a Deus porque Ele mesmo assim o quis. Isso o expressa, por exemplo, a “Lumen Gentium” n. 9, Constituição sobre a Igreja do Concílio Vaticano II, ao escrever: “Aprouve a Deus santificar e salvar os homens não singularmente, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas constituí-los num povo que O conhecesse na verdade e santamente lhe servisse”.
Ora, aqui é preciso lembrar que para designar povo, a Sagrada Escritura usa sempre, no Novo Testamento, o termo laós, ocorrente 140 vezes, e embora nem sempre se refira à Igreja, mostra a oposição ao vocábulo povo em sentido meramente profano ou sociopolítico (demos). Todo fiel batizado é leigo, depois, com o passar do tempo, irá escolher, livremente, a sua vocação: pode permanecer leigo na consagração ou no matrimônio ou ainda tornar-se religioso (a) ou sacerdote.
Todavia, como lembrou o Papa Francisco, antes de qualquer outra missão na Igreja, somos leigos batizados e isso guarda uma unidade fundamental no Povo de Deus, conforme ensinava, já no século V, Santo Agostinho, Bispo de Hipona, ao escrever aos seus diocesanos: “Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo, convosco sou cristão. Aquilo é um dever, isto é uma graça. O primeiro é um perigo, o segundo, salvação”. (Sermão 340,1).
Ora, como bem lembra o Documento 105 da CNBB, intitulado Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade, sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14), o Concílio Vaticano II, cujos cinquenta anos há pouco celebramos, foi um divisor histórico ao tratar do leigo em seus documentos e colocar esse maior segmento numérico do povo de Deus na vida da Igreja antes da hierarquia. É do laicato, vocação própria de todo batizado, que nascem também as demais vocações como dons à Igreja. Foi depois do Concílio, então, que surgiu o Pontifício Conselho para os Leigos a prestar relevantes serviços à Igreja. Atuou muito e agora será criado um novo Dicastério, que une ao dos leigos também o trabalho com a Família e a proteção da vida em toda a sua esfera.
Sim, é a família a célula mãe da sociedade. Sem esse núcleo básico bem alicerçado, não há sociedade sadia. Se a família vai bem, o mundo também vai; se vai mal, todo o restante descamba nos maiores precipícios do crime, da pornografia, da deseducação, da falta de valores éticos etc. Desse modo, sempre que algo não for bem, é preciso que perguntemos: A família, como vai? Que temos nós, leigos e pastores, feito por ela? Qual aplicação prática estamos dando à Exortação pós-sinodal “Amoris Laetitia” do Papa Francisco, recém-publicada? Que atenção temos dado às famílias em situação especial nas nossas comunidades ou vizinhanças: ajudamos ou queremos crucificá-las?
Devemos indagar ainda o Poder Público, especialmente os representantes que elegemos para as diversas esferas com o nosso voto, sobre como estão trabalhando para defender e salvaguardar a família ou, então, vigiar, com incansável zelo, as leis e medidas que tentam aprovar, às vezes nem sempre de modo claro, contra a família a fim de enfraquecê-la cada vez mais e, assim, levar, ainda que inconscientemente, a um maior caos social. Neste ponto, é louvável toda iniciativa, dentro da lei e da ordem, a fim de vigiar os passos dos governos e das casas legislativas na defesa da família e da vida. Aliás, a defesa da vida é outro ponto unido ao Dicastério dos leigos nesta reforma da Cúria Romana.
Ao falarmos em defesa da vida, temos de ter em mente o que ensina a Igreja. Ela defende o ser humano desde a sua concepção até o seu fim natural, conforme ficou bem clara e didática no discurso de chegada do Papa Bento XVI ao Brasil, em 2007. Isso significa que há vida desde o instante zero da concepção, conforme atestam os biólogos e genetecistas de nossos dias a partir de Jerome Lejoune, cientista francês, descobridor da Síndrome de Down, mas muito perseguido por dizer, com base em dados científicos, que a vida começa na concepção. Se não começasse aí, nunca mais começaria.
Sua conclusão é muito lógica: se dos gametas masculino e feminino não vierem todas as informações genéticas à nova vida, de onde mais viriam? Ele pergunta, aliás, em tom desafiador tudo isso e afirma que o bebê de proveta provou que há vida desde a concepção.
No entanto, sabemos o quanto essa vida frágil e indefesa, mas vida autêntica, é de tantas maneiras menosprezada e até condenada à lata do lixo da História por meio do aborto consentido ou do descarte de embriões congelados, mas rejeitados para implantes: os chamados embriões excedentes descartados, como se fossem meros amontoados de células. Essa “cultura do descarte” tem sido criticada, com razão, pelo Papa Francisco. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, torna-se joguete nas mãos de seus irmãos como se fossem peças de reposição: este merece viver, aquele não; este tem as características genéticas que preferimos, aquele não etc. É uma seleção que leva à eugenia disfarçada em pleno século XXI.
E não para aí. Também nossos idosos em não poucos países são ameaçados pela lei da eutanásia. Quem não produz mais, em vez de ser cuidado com carinho não só por gratidão pelo que já fez, mas pela dignidade intrínseca de ser filho de Deus, é rejeitado pela família e pela sociedade, às vezes até pelos órgãos estatais que deveriam cuidar dele. É condenado à morte como um estorvo na vida social...
Ora, irmãos e irmãs, não podemos nos esquecer da bela Carta aos Anciãos que o Papa São João Paulo II escreveu, nem das constantes mensagens do Papa Francisco aos avós, pedindo que eles sejam valorizados na família e na sociedade. Aliás, ele mesmo se referiu ao Papa emérito e idoso Bento XVI como um “nono sábio”, aquele que tem algo a nos ensinar pelos seus anos de vida, experiências acumuladas. Não podem ser descartados, mas, sim, integrados ou reintegrados à vida social, mesmo com suas forças exíguas no corpo e na mente. Jamais perdem a sua dignidade.
Patrocinar o fim da família como Deus quis, o fim da vida indefesa e inocente no ventre materno ou o assassinato de idosos ou pessoas com doenças incuráveis é demonstrar que a humanidade regrediu à barbárie pré-cristã atestada por escritores que se debruçaram sobre o assunto. O cristianismo é vida a derrotar a morte.
Terminemos com a constatação dessa verdadeira revolução moral oferecida pelo Cristianismo. Escreve o filósofo Sêneca, considerando comuns os crimes que se cometia na Roma não cristã: “Quando matamos cães furiosos... e submergimos as crianças fracas ou monstruosas, não o fazemos movidos pela cólera, mas pela razão” (Sobre a Ira I, 1.5). Ora, o Cristianismo reformulou esse pensamento, ensinando a dignidade de cada homem e mulher da Terra desde o ventre materno até o seu fim natural, conforme diz um renomado historiador.
“O pai pagão que incita a ama a lançar o filho recém-nascido ao lixo da rua... O mártir cristão Leônidas, que descobre o peito de seu filhinho Orígenes adormecido e o beija com veneração como sendo templo do Espírito Santo; eis concretizados dois mundos, duas filosofias” (Alla ricerca della fede. Assissi, 1969, p. 276).
Por essas razões, fazemos votos de que a reforma proposta para a Cúria Romana produza frutos entre o povo de Deus na promoção do laicato, na defesa da família, santuário da vida, e da própria vida em si, especialmente a mais ameaçada pela cultura do descarte de nossos tempos.
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ