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Com a febre amarela não se brinca

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O atual alarme em relação ao vírus Zika, ainda que justificado, deixa por vezes escapar, ou reduz a enorme relevância do mosquito Aedes ægypti como excepcional vetor de viroses epidêmicas urbanas, como o dengue e a febre por vírus Chikungunya, doenças mais graves, no plano individual e coletivo do que a primeira – se excluído o problema da microcefalia epidêmica, com a muito provável participação do Zika, no entanto ainda não de todo esclarecida. 

Neste rol de doenças, vem sendo esquecida a febre amarela, única para a qual existe uma vacina barata e eficaz - o que talvez tenha contribuído para a negligência e o descaso internacionais frente à intensificação da atividade do Aedes nas últimas cinco décadas. Ela existe no Brasil sob a forma dita silvestre, mantida em ciclo entre primatas e mosquitos arborícolas dos gêneros Sabethes e Hæmagogus, e no qual o homem intervém apenas esporádica e acidentalmente. Esta enzootia ocorre em quase todo o território nacional, com exceção da maioria dos estados do Nordeste (menos partes de Bahia, Maranhão e Piauí) e do Estado do Rio de Janeiro. Houve uma ressurgência do vírus amarílico em 2015, com sete casos registrados em Goiás (5) Pará e Mato Grosso do Sul. Além desses, houve um caso críptico (ou seja, de origem desconhecida) na cidade de Natal, em uma pessoa sem história de viagem para outros locais, e sem a verificação posterior de casos secundários, que indicassem transmissão urbana continuada, por Aedes ægypti, na capital potiguar. 

A estratégia nacional de prevenção da febre amarela vem sendo feita através da vacinação rotineira da população da área enzoótica, com bons resultados empíricos, já que não se registram casos da forma epidemiológica dita urbana (isto é, transmitida pelo Aedes ægypti– exceto pela possível exceção acima mencionada)desde a ocorrência do último caso, em 1942, no Acre, e já que, com níveis de cobertura vacinal de 60 a 80% da população, uma epidemia é menos provável.

Mas a febre amarela não deve ser esquecida: em 2008 ocorreu uma epidemia da forma urbana da doença no Paraguai, com três focos definidos, um deles nos arredores de Assunção. Graças à intensa mobilização internacional (inclusive do Brasil, como de esperar), e à existência de uma vacina barata, eficiente, de boa disponibilidade e para a qual existe enorme experiência, o episódio foi logo encerrado.

A febre amarela não pode ser esquecida. O número de casos da doença vem aumentando no mundo, nas duas últimas décadas, devido a fatores de difícil controle, como desmatamento, urbanização, movimentos migratórios, redução da imunidade coletiva e, por último, por mudanças climáticas. Estima-se a ocorrência de cerca de 200 mil casos por ano, resultando em mais de 30 mil mortes, com 90% de casos e óbitos ocorrendo na África. Lá, e nas Américas, a população sob risco potencial atinge mais de 900 milhões (por razões não entendidas, a febre amarela jamais ocorreu na Ásia, ou na Oceania – até agora, ao menos).

A doença tem um período de incubação curto, de 3 a 6 dias. Como ocorre com dengue e zika, a maioria das infecções é assintomática. As formas leves da doença se manifestam por febre, cefaleia e dores musculares, quadro clinicamente indistinguível de outras viroses – como dengue, chikungunya e zika. As formas graves se distinguem pela ocorrência de hemorragias, icterícia e insuficiência renal, e têm uma letalidade que atinge 50%; considerando-se que, em uma epidemia, até 20% da população de uma cidade pode ser atingida, imagine-se a catástrofe daí decorrente.

A febre amarela não pode ser negligenciada, veja-se o caso do Paraguai, em 2008.

O Estado do Rio de Janeiro não é área enzoótica da febre amarela. Nem a cidade de São Paulo. Assim, a vacinação contra a febre amarela não faz parte do calendário vacinal nas duas capitais: as suas populações são em grande parte não-imunes contra o vírus.

Desde o começo de dezembro ocorre uma epidemia de febre amarela em Angola. Inicialmente no município de Luanda, espalha-se já por pelo menos nove províncias do país, algumas a considerável distância da capital. Foram já registrados cerca de 150 casos, com perto de 40 óbitos. A necessária campanha de vacinação foi iniciada só nesta semana passada, vem se desenvolvendo de forma lenta, e se dá apenas na capital, no momento.

Não se deve negligenciar ou esquecer a febre amarela. Entre Luanda e os aeroportos do Galeão e de Guarulhos existem sete voos por semana; há uma grande comunidade angolana entre nós, que aqui estuda, trabalha e recebe parentes e amigos vindos de Angola. Cada voo tem capacidade plena para cerca de 300 pessoas, entre tripulantes e passageiros. Isto representa, potencialmente, 2.100 pessoas por semana, 8.400 por mês e, desde o início da epidemia, quase 19.000 indivíduos chegados da área epidêmica. Qualquer um, ou mais de um deles, um possível portador assintomático ou em incubação do vírus da febre amarela.

Não se brinca com a febre amarela. O Brasil deve tomar - já deveria ter tomado, aliás – imediatas medidas em relação à possibilidade de entrada do vírus amarílico em nosso território, a partir de Angola. Dentre essas medidas estão (a) imediata oferta de cooperação técnica e de vacinas (em falta, lá) ao país africano, para debelar a epidemia; (2) exigência de certificado internacional de vacinação contra a doença para todas as pessoas provenientes de lá (ainda que as autoridades angolanas admitam que muitos desses certificados sejam fraudados); (3) advertência a todos os viajantes oriundos de Angola de que devem imediatamente procurar assistência médica em caso de qualquer doença febril, advertência feita por folhetos, por cartazes nos aeroportos, por anúncios pelo sistema de som ou outros meios (em verificação recente: nada disso está ocorrendo no Galeão); (4) amplo aviso e informação a unidades e profissionais de saúde para que considerem a possibilidade de febre amarela em pessoas com doença febril indiferenciada, ou com icterícia, hemorragias e insuficiência renal, naturais de Angola, ou que tenham tido contato domiciliar ou de vizinhança com pessoas daquele país.

Febre amarela não é dengue, não é zika, não é chikungunya. Com a febre amarela não se brinca.

Médico infectologista e epidemiologista, professor da UFRJ, membro Titular da Academia Nacional de Medicina