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Quando o contador se torna xerife

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Não é incomum que contadores tenham uma visão muito mais acurada da saúde de um negócio do que os próprios proprietários. É razoável que assim seja. Enquanto o empreendedor ou seus diretores estão preocupados com o desenvolvimento do negócio como um todo, o contabilista tem foco muito específico e, assim, é capaz de detectar aqueles pequenos tremores que talvez demonstrem a proximidade de um terremoto. Além disso, quem fundou uma empresa e a toca tem com ela uma relação emocional que, por vezes, não permite uma visão desapaixonada do andamento das coisas. Isto é, acabam usando certo excesso de otimismo e não observando fatos que poderiam demonstrar algum problema.

Em empresas de médio porte que estão crescendo de forma acelerada, especialmente, certas questões podem passar despercebidas por longos períodos. Uma delas, e na qual o contador pode ser a diferença entre a empresa saber e não saber de sua ocorrência, é a de desvios de recursos ou roubos organizados, tanto por funcionários quanto por estes ajudados por criminosos externos.

Esse tipo de situação pode vitimar um médio negócio com mais facilidade justamente por ele ser médio – isto é, não conta com o controle próximo que os donos têm nos pequenos empreendimentos nem com o ferramental e pessoal de gestão com que contam as grandes companhias. Muitas vezes, alguns indicadores simples, se bem observados pelo contador, podem denunciar que há algo de podre na empresa e, mais ainda, onde o malfeito pode estar ocorrendo. Um olhar mais detido sobre os gastos da área de RH, por exemplo, já me levou a descobrir esquemas mirabolantes de demissões nas quais o próprio jurídico da empresa estava envolvido, criando situações sequenciais de desvios por meio de acordos trabalhistas fraudulentos.

Eu penso que o papel do contador seja manter a contabilidade do cliente, interno ou externo, na mais correta perfeição – o que implica em ficar atento e agir como um guardião dessa perfeição possível inclusive quanto a desvios éticos feitos à revelia da empresa. Nesse sentido, investir algum tempo observando o cenário e buscando ocorrências “fora da curva” é um exercício que pode trazer benefícios para o cliente, e naturalmente para o próprio contabilista.No caso da ocorrência em RH que citei, a descoberta da fraude se deu em virtude de “instabilidades” no fluxo comum à área. Mas a descoberta pode se dar justamente pelo viés contrário, isto é, pela observância de fatos recorrentes. Não é anormal uma empresa investir certa quantia de dinheiro todo mês adquirindo software digamos, seus 20 mil reais. Mas, considerando o perfil da empresa, o número de funcionários, o tipo de software adquirido e os fornecedores envolvidos, talvez as coisas não continuem tão comuns. Será que é razoável ela comprar 50 licenças do programa Xis do fornecedor XisXis todo santo mês se só tem 60 funcionários? Averiguar, pelo bem do cliente, nunca é demais – e, muitas vezes, uma coisa à toa leva a outra grande, bem grande, quando há fraudes envolvidas.

Em meus muitos anos como investigador de corrupção corporativa, o que mais vi, e infelizmente continuo vendo, é que na grande maioria dos casos a empresa é lesada por traição dos próprios executivos e funcionários via propinas. Melhor dizendo, por meio de “kick back”: o fornecedor manda de volta para o funcionário parte do dinheiro recebido fraudulentamente.

Isso ocorre por exemplo quando o fornecedor paga para conseguir um contrato a valores mais altos que do mercado – e, pasme, é o tipo de coisa que ocorre desde fornecimentos banais como serviços de limpeza e de alimentação até mais sofisticados, como TI ou jurídico. A lista, na verdade, não tem fim. E, em quase 100% dos casos, envolve mais do que uma única pessoa na empresa. É razoável, já que para fazer desvios é preciso abranger mais de uma área e contar com os olhos fechados de colegas.

Apesar de isso, de fato, não ser do escopo “normal” do contador, imagino que possa ser interessante ficar atento e agir – até porque, no limite, ter desvios criminosos na contabilidade que você assina não é exatamente uma ideia muito estimulante.

*Barry Wolfe, advogado pela Edinburgh University e pós-graduado em direito econômico pela Yale Law School e, ainda, mestre em direito internacional por Cambridge, Inglaterra, comandou dezenas de investigações de crimes no mercado corporativo e de apoio a políticas de compliance, atendendo a companhias no top-100 das maiores empresas do Brasil.