Quando estudamos a História do Brasil, aprendemos que a abolição da escravatura ocorreu em etapas. Primeiro foi abolido o tráfico de escravos (1850). Depois foi promulgada a Lei do Ventre Livre, em benefício dos filhos de escravos (1871). Veio depois a Lei dos Sexagenários, que libertava da escravidão os idosos (1885). Finalmente, em 13 de maio de 1888, a abjeta escravidão foi totalmente proscrita de nosso país.
Se assim é contada nossa história, o que é esse tráfico humano que a Campanha da Fraternidade deste ano denuncia? Ainda existe o tráfico de pessoas em terras brasileiras, já que o tráfico foi abolido em 1850?
Infelizmente, a resposta à indagação é afirmativa.
Crianças são traficadas para extração e comércio de órgãos. Mulheres desprovidas de um mínimo de informação são iludidas com promessas de bem-estar e traficadas para a prostituição. Trabalhadores são deslocados do lugar onde vivem e transportados para outros territórios a fim de serem explorados como escravos. Não se trata de uma fantasiosa história de terror mas de um fato concreto que os bispos brasileiros, com a reputação conquistada pelos serviços prestados ao povo, certificam, denunciam e condenam, conclamando todas as pessoas de caráter a uma tomada de posição. Sim, não se trata de conclamar os cristãos, e muito menos os católicos. Não é preciso ser católico ou ser cristão para dizer peremptoriamente: basta, isto não pode continuar.
Para o homem religioso o tráfico humano é uma blasfêmia, é ofensa ao Deus Criador. Para o homem que guarda princípios éticos, sem professar uma crença, sem se filiar a um credo, o tráfico humano é uma ignomínia, que não pode ser tolerada.
Mas não basta protestar e indignar-se. É preciso exigir providências para que o tráfico humano desapareça dos horizontes nacionais.
Sejam cobradas ações efetivas dos poderes Executivo e Legislativo. Que se exijam posições firmes e rigorosas do Ministério Público. Que o Poder Judiciário, devidamente provocado, não se cale, nem transija. Que a sociedade civil como um todo assuma sua grande parcela de responsabilidade.
O que não se pode admitir é a atitude de passividade e silêncio, quando sabemos que existem seres humanos tratados como mercadoria. E até pior do que mercadoria, porque as mercadorias são guardadas e conservadas para que não se deteriorem, enquanto pessoas humanas vítimas de tráfico são expostas à perda da condição humana, à destruição, à doença e à morte.
Se aqueles que são vítimas do tráfico nem protestar podem, sejamos nós a voz dos que não têm voz, de modo que nosso grito de revolta ecoe de Norte a Sul.
* João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado e livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo, foi um dos fundadores e primeiro presidente da Comissão de Justiça e Paz da arquidiocese de Vitória e acaba de publicar Encontro do direito com a poesia – Crônicas e escritos leves' (GZ Editora, Rio). -: [email protected]