ASSINE
search button

A Eucaristia e o corpo feminino (II

Compartilhar

Com a festa de Corpus Christi, convém permanecermos em continuidade com nossa reflexão na crônica da semana passada: a afinidade simbólica e real da Eucaristia com o corpo da mulher. Nunca é suficiente o maravilhamento e a ação de graças diante do milagre que faz com que o corpo da mulher seja o sacramento, o sinal sensível pelo qual toda nova vida é gerada e alimentada.

Assim é que encontramos pelo mundo mulheres que vivenciam isso de diversas maneiras. Sendo ou não mães biológicas; engravidando ou não; amamentando ou não. A realidade aberta de seus corpos permanece referência poderosamente evocativa da presença real e da transubstanciação que a cada momento todo ser humano é chamado a sinalizar com sua própria corporeidade.

Assim foi com aquelas mulheres argentinas que com um pano branco na cabeça – simbolizando as fraldas que haviam tantas vezes trocado em seus filhos perdidos e desaparecidos – passeavam silenciosas sob a janela do ditador. Eram donas de casa, mães e avós, apenas.  Começaram a reunir-se para protestar diante da Casa Rosada, em Buenos Aires.  Foi-lhes dito que não podiam ficar paradas ali nem falar.  Passaram então a caminhar silenciosamente.  Todo dia, cada dia, durante muito tempo.

O que traziam as chamadas “loucas” da Praça de Maio?  Traziam para o espaço público a orfandade dos filhos e netos perdidos, que sabiam mortos e dos quais reivindicavam ao menos os corpos para enterrá-los dignamente.  

Traziam a ausência dos netos apenas conhecidos e que nunca mais haviam visto. Queriam criá-los, cuidá-los.  Nada mais privado e familiar do que a reivindicação daquelas mulheres silenciosas que, com seu gesto eucarístico exposto em praça pública, contribuíram para desestabilizar uma das mais sangrentas ditaduras do continente.

Assim é também com tantas mulheres que vivem a dor e a frustração tremenda da pobreza e da desnutrição que as leva a não terem nada em seu magro seio para alimentar os filhos.  O bispo de Crateús atravessava a cidadezinha pequena e pobre quando viu uma delas.  Com seu corpo extensivo, tinha crianças no colo, nas costas, agarradas à saia, ao redor.  Mas o que lhe chamou a atenção foi o choro desesperado do bebê que estava em seus braços.  Sem dúvida, tinha fome. O bispo aproximou-se da mulher esquálida e abatida.  E perguntou-lhe por que não dava de mamar ao bebê. Ela disse não poder fazê-lo.  E ante sua insistência, abriu o seio sobre o qual o bebê se atirou vorazmente.  E sugou sangue.  Já não restava nada mais naquele seio que deveria estar túrgido de leite, mas se apresentava vazio e seco como a terra do sertão onde a mulher tentava fazer seus filhos sobreviverem à seca inclemente e à injustiça diuturna e cruel.

Outras mulheres que não foram mães biológicas sentiram em si mesmas esse retorcer eucarístico das entranhas na urgência do dom de sua vida para alimentar outros.  É assim que Simone Weil, filósofa e mística francesa, pouco antes de morrer, escreve “desejar ser devorada por Deus, transformada em substância de Cristo  e dada em alimento a todos os desventurados cujo corpo e alma sentem falta de alguma espécie de nutrição“.

É assim igualmente que Etty Hillesum, a jovem mística judia que morreu aos 29 anos na câmara de gás em Auschwitz, escreveu em seu diário quando sentiu que as garras do exército hitlerista se fechavam sobre seu frágil corpo. Enquanto servia e ajudava os que como ela aguardavam o comboio que os levaria em viagem sem volta para a Polônia, escreveu: “Eu parti meu corpo como pão e o reparti... E por que não, eles estavam famintos e sentiam falta disso por tanto tempo...”.

Corpo partido e repartido, carne dada e comida e consumida.  Este é o gesto derradeiro e definitivo de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, em sua encarnação, vida, morte e ressurreição.  Esta é sua maneira de continuar presente entre nós. Esta é a graça que temos todos nós, seres humanos – mas de maneira especial as mulheres – de podermos ser presença real e alimento dado para saciar todas as fomes que impedem a vida de ser plena.

*Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de vários livros como 'Um rosto para Deus' (Ed. Paulus) e 'O mistério e o mundo', recém-lançado pela Editora Rocco. –  [email protected]