ASSINE
search button

As proibições emotivas,inócuas, ineficazes e autoritárias 

Compartilhar

Algumas notícias, comentários e proposições legislativas recentes tocaram minha memória, e decidi pesquisar um fato que ocorreu no início do século passado que, se não fosse trágico, seria cômico. Uma próspera e pujante cidade do interior, despertando para o século 20, prometia tecnologia, ciência, desenvolvimento. A República chegara com suas promessas de modernidade, a riqueza era consequência do trabalho, do progresso positivista, o futuro era o presente. 

Um habitante ilustre, filho de família tradicional – origem e berço – médico brilhante, humanista dedicado, a todos atendia; pobres, ricos, indigentes, negros libertos, não havia distinção. Criara o pavilhão de atendimento aos tuberculosos – o mal do século. Melhor ser humano não poderia existir, expressava o que de mais perfeito se via na sociedade.

Numa noite em que saía do clube – após, ao que se lhe atribuía como único pecadilho, um paciente jogo de cartas e algumas bebericadas de um ótimo Bordeaux e alguns brandyes – um trágico acidente. Ao se despedir do porteiro, não notou o discreto aviso de “cuidado, doutor”. Atravessou a rua, como sempre fazia, foi colhido por uma jardineira – como se chamavam os pequenos caminhõezinhos derivados dos calhambeques da época – e morreu na hora. Conta a lenda que em seu semblante expressava um derradeiro sentimento de espanto e perplexidade. Comoção na cidade. Pela manhã, o jornal local, em edição extraordinária, exibia a manchete em letras garrafais: “MORREU O DOUTOR, vitimado por um louco em sua máquina diabólica". Entre o obituário, artigos, notas de pesar e tudo que se aplica em situações semelhantes, pediam-se às autoridades providências e exemplar punição. Os funerais foram comoventes.

O esquife com o brasão da família, ornado pelos pavilhões do seu clube, da cidade, do estado e da República, foi exposto à visitação do público no Salão Nobre da prefeitura. O povo fazia fila para levar sua última reverência, os desmaios, convulsões e choros eram permanentes. O cortejo fúnebre que o levou em sua última jornada foi espetacular, a carruagem de preto, puxada por seis soberbos cavalos brancos, percorreu as ruas para o último adeus da população a seu mais querido filho – parava em cada esquina para manifestações.    

Abriram-se os devidos procedimentos legais – apuraram o que já se sabia. O algoz era um entregador de produtos originados no interior, que precisava chegar cedo ao mercado para abastecer a mesa matutina da já exigente burguesia. Mas as autoridades não se fizeram esperar. Reunidos no dia seguinte, o prefeito propôs, e os vereadores aprovaram em emocionada sessão uma lei. Estava proibida a entrega de mercadorias no perímetro urbano por veículo movido por máquinas, somente sendo permitida a tração humana ou animal, revogando-se as disposições em contrário.

Obviamente, como se observou, esta lei não evitou os futuros acidentes e obviamente não “pegou”. Espantamo-nos? Não.

Na atualidade, neste início de século 21, continuamos a ver o mesmo tipo de absurdo. Em recentes iniciativas legislativas a Anvisa e outras instituições, com o pretenso objetivo de diminuir o número de queimados, querem proibir, no varejo, o comércio do álcool líquido envasado, só o permitindo a granel nos 30 mil postos de combustíveis. Mas não é novidade. No Porto do Rio de Janeiro, com o intuito de proteger a mão de obra escrava, já foi proibida, internamente, a roda. Os veículos não podiam transportar carga, só a força humana por arrasto.          

* Ary Alcantara é consultor da Associação Brasiieira dos Produtores e Envasadores de Álcool (Abraspea).