O autor angolano de origem portuguesa valter hugo mãe (tal qual em seu discurso ficcional, escrevem-se vocábulos, nomes e sobrenomes com letras minúsculas), detentor do merecido Troféu Simpatia da IX Festa Literária de Paraty, em sua obra literária intitulada o remorso de baltazar serapião, por vezes faz lembrar o leitor, sobretudo pelo viés da inovação da linguagem empregada, a estética da oralidade empregada por José Cândido de Carvalho, em O coronel e o lobisomem, magistral obra publicada em 1964, mais inclusive do que a orgânica experiência labiríntica de Jorge Luís Borges e Guimarães Rosa.
Conquanto não se possa afirmar com exatidão que o talentoso autor de outros registros em prosa de ficção, entre os quais a máquina de fazer espanhóis, tenha lido a já clássica desventura do coronel de patente Ponciano de Azeredo Furtado que, no tocante ao cinismo do discurso narrativo, a meu ver caracteriza-se por uma espécie de reescritura pitoresca do romance Quincas Borba, de Machado de Assis. Cabe destacar, no entanto, o diálogo com Rosa, mencionado inclusive pelo próprio autor ibérico quando, em entrevista a um programa de televisão, afirmara que não seria possível conceber a saga de baltazar serapião não fosse a impactante experiência de leitura de Grande sertão: Veredas.
Todavia, ainda que no livro de hugo mãe haja uma espécie de pacto demoníaco forçado pela figura feiticeira de uma mulher queimada – personagem que, quiçá, irá substituir no espaço folclórico o lobisomem de Cândido de Carvalho –, não procede a analogia em sua essência e fabulação, cujas menções não irão além do remanejo linguístico detectado no colóquio artesanal com o autor de Sagarana e Corpo de baile. Desta feita, é preciso entender que o malabarismo das imagens idiomáticas construídas por mãe – deste vocábulo brotou a alusão de Saramago ao novo parto da maiúscula Língua Portuguesa –, se aproximam muito mais da dialética do cinismo apregoada por Azeredo Furtado do que da emblemática alocução barroquizante do jagunço-orador Riobaldo, porque menos humana e, por conseguinte, forçosamente mais abissal e mítica.
Decerto, a prosódia – e, sobretudo, a gabolice e bazófia – do amansador de lobisomem idealizado por Cândido de Carvalho não esbarraria no tom pessimista de baltazar serapião, não só em relação a sua linda ermesinda, que protagoniza a dúvida de adultério já decantada magistralmente em Dom Casmurro, como também a menção ao fado dos sargas oriundos de um animal de estimação, que os dera título, origem e genealogia. Em o remorso de baltazar serapião, sem dúvida, observa-se a mesma proposição neológica rosiana; todavia, há de se prevenir o leitor para o abismo que, ao aproximar o escritor luso-angolano de Guimarães Rosa, no desconcertante intento propositado pelo laboratório linguístico, pode-se também perceber o assombroso distanciamento – leia-se abismo identitário entre um e outro escritor –, imposto por uma criação calcada na tessitura da linguagem com base nos exageros surrealistas assinados por hugo mãe.
Em nítida oposição aos feitos confessados por Riobaldo-Tatarana ao seu hóspede-interlocutor, n’o remorso de baltazar serapião a impressão que fica é de um humor às avessas que se constrói pelo viés de uma inverossímil crueldade, que se arvora por sobre o enredo sem medir as consequências dos fatos narrados. Em Grande sertão, apesar de reconhecer estupros e mortes, a narrativa se perfaz através de duas aflições primordiais e aterrorizadoras para o fazendeiro: a paixão homossexual nutrida por Reinaldo/Diadorim e o pacto com o Demo das Veredas Mortas. Em O coronel e o lobisomem, o tom de voz resvala numa espécie de Paulo Honório refestelado pela comicidade que, de certa forma, o resigna ao objeto de sua frustração sentimental e ruína financeira – a paixão proibida e inalcançável alimentada pela cobiça dos seus descendentes herdeiros.
Na obra lusitana, o que salta aos olhos do leitor vem a ser a bem sucedida aventura amorosa do protagonista que, a princípio, recebe as bênçãos da família para usufruir da beleza e graça de ermesinda. Contudo, a realidade que ilustra o ofício da noiva, supostamente amasiada com o senhor de engenho da aldeia, transformaria baltazar serapião em obsessivo mutilador das virtudes morais e atrativos físicos de sua esposa desleal e inconfidente. Conquanto inconscientemente, constata-se que a experiência de valter hugo mãe, por intermédio do inovador discurso ficcional de âmbito linguístico, se associa ao mestre de Campos dos Goytacazes na lírica e metafórica repatriação do lobisomem.
Enfim, peço permissão aos leitores para encerrar a crônica com um pedido de atenção aos organizadores da Flip, que elegeram a misteriosa argentina Pola Oloixarac como musa do evento quando, em verdade, o posto fora ocupado pela cineasta Anna Azevedo, flor de brasilidade.
Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’. wanderlourenco