ASSINE
search button

Antropóloga diz que atentado contra Marielle foi tiro pela culatra na intervenção 

Compartilhar

Passado um mês da intervenção federal na segurança do Estado do Rio, a falta de um plano de ações é criticada pela antropóloga Jaqueline Muniz. Professora do Departamento de Segurança Pública da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), ela afirma que a rotina de exceção incentiva a “síndrome da pequena autoridade”, o que teria propiciado o assassinato da vereadora Marielle Franco: “O problema do discurso de uma intervenção, que não fica claro a que veio ou o que vai fazer, é que estimula, na ponta, o “pode tudo” do policial, do criminoso, do cidadão amendrontado”. Na tarde do último sábado, ela conversou com o JORNAL DO BRASIL.

A senhora tem acompanhado os observatórios que foram constituídos para analisar a intervenção federal na segurança do Estado do Rio de Janeiro? Qual seria o saldo dessa intervenção? 

É muito complicado falarmos de um saldo, já que não foi apresentado ao público um plano de segurança, de modo que pudéssemos aferir o que de fato foi feito, o que não avançou e o que precisa melhorar, sob o controle da sociedade. Em face disso, os observatórios que foram constituídos para acompanhamento dessas ações ainda têm pouco a dizer, exceto pelas denúncias vindas por parte de moradores de comunidades populares. Denúncias de que tem havido uso de força excessiva, seja por parte de alguns policiais ou de alguns integrantes das Forças Armadas. O fato é que, sem um plano de segurança e sem uma apresentação pública dele, como também sem a participação mais efetiva da sociedade, é complicado aferir o que de fato está acontecendo nessa intervenção.

O que poderia significar, para esse primeiro mês da intervenção, o assassinato da vereadora Marielle Franco? 

O atentado político contra ela e, consequentemente, contra Anderson (Anderson Pedro Gomes, o motorista que dirigia o carro da vereadora) foi um tiro pela culatra na intervenção, porque  revelou sua fragilidade. Se havia uma proposta de reestruturar o sistema de inteligência, (o assassinato) mostrou que a inteligência constituída não foi capaz de detectar um tipo de atentado que é simples, sobretudo porque envolve uma parlamentar conhecida. O que aconteceu qualquer um poderia ter feito: bastaria ter vontade, disposição, oportunidade e uma arma na mão. Esse risco fez com que a cidadania no Brasil acordasse e visse o quanto nós podemos estar expostos. É por isso que a morte da vereadora virou um fato simbólico de grande rerpercussão. Quem pensa diferente coloca sua vida em risco, sem que o Estado possa lhe oferecer garantias mínimas de proteção.

A exposição a esse tipo de risco pode levar pessoas que trabalham com a causa dos direitos humanos a ter medo de uma morte como essa? 

Essa ameça, que se impõe, é difusa. Todos nós estamos expostos. Em primeira instância, aqueles que defendem o direito de todos. O direito de todos inclui o direito dos policiais, que hoje foram transformados em zumbis do policiamento. Defender direitos humanos é defender também a polícia como ferramenta superior — em meios e métodos — a procedimentos violentos, ilegais e criminosos de produção de proteção e distorção da sociedade. Aqueles que, por exemplo, defendem uma guerra contra o crime, não gostam da polícia, não gostam da vida e nem da cidadania. Ao estimular a cortina de fumaça, que é essa guerra, eles multiplicam seus palanques eleitorais. Cada morte, cada velório serve de palanque para esses que discursam contra os direitos. 

O atentado então chama a atenção para o fato de todos estarmos expostos a esse risco, mesmo sob o aparato da intervenção federal na segurança deste Estado? 

Quando vivemos sob uma intervenção, a rotina é susbtituída pela exceção e pela excepcionalidade. Cada um da esquina acha que pode mais. Você estimula a síndrome da pequena autoridade, de maneira que os pequenos ódios, as pequenas raivas, as pequenas vinganças vão se transformando em grande ódio, grande discurso de intolerância. Cada um ali na esquina passa a querer resolver por seu próprio meio ou à sua maneira as suas questões. O problema do discurso de uma intervenção, que não fica claro a que veio ou o que vai fazer, é que estimula, na ponta, o “pode tudo” do policial, do criminoso, do cidadão amendrotado. Esse “pode tudo” significa uma desobediência generalizada, pela ausência de governos legitimamente eleitos. Quando você olha para cima, não há governo legitimamente eleito. Cada um se vê dono do seu próprio terreiro, do seu próprio território. O cidadão vai fingir que obedece à polícia, o policial finge que obedece à nova chefia, e a chefia finge que obedece ao interventor. Na síndrome da pequena autoridade, alguém vai fingir que obedece e alguém finge que está mandando. A lógica interventora estimula o “nós contra eles”. E assim não sabemos onde começa e termina a cerca da proteção. A impressão que se tem é que isso (o assassinato) vem dos porões. O fato político em que se constituiu a morte da vereadora mostra que seria de uma estupidez política se a cúpula, tanto de governos quanto da intervenção, se envolvesse nisso. Foi, como disse, um tiro pela culatra, prestou um grande desserviço aos seus patrões. Agora, não há como voltar atrás: a rua voltou a ser da cidadania, as pessoas passaram a ter consciência do risco a que estão expostas. Na segurança pública, não se improvisa com soldados de chumbo, tentando ser segurança de condomínio ou de favela.   

Esse sentimento de que a rua voltou a ser da cidadania é irreversível ? 

O alerta constituído produziu essa resistência. Agora, as pessoas passarão a procurar “pelo em ovo” nas atividades do interventor federal e na gestão das polícias. Estamos todos atentos e alertas. E isso fará com que (o interventor) tenha que apresentar um plano à sociedade ou o que eles propuseram vai embora pelo ralo. Além de bárbaro, o atentado foi tosco. Não se constroi isso, se a ideia é se manter no poder. Está em risco a invulnerabilidade desses que estão no papel da intervenção, no exercício do governo.

Há quem diga que que esse assassinato poderia ser usado para estimular ainda mais a repressão nessa intervenção... 

Esse é um discurso do medo, da ameaça, e não da segurança pública. Se há uma coisa que é escassa é a repressão. Portanto, a ideia de que se pode intensificar a repressão, é produzir escassez da própria repressão que se pretende aplicar. Não há como estender para todo território nacional lógicas interventoras, porque esse é um recurso escasso, de deslocamento caro. Portanto, a ideia de que o país inteiro poderá ficar sob uma intervenção, só se inventarem um novo golpe. Mas não me parece que seja o caso das Forças Armadas, que estão vendo com muita prudência e desconforto esse fato de serem usadas fazendo um “bico” na segurança.