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Rio: consumidores de crack tomam as ruas da cidade

De acordo com pesquisa e especialistas, tratamento humanizado garante resultados mais significativos

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Com os recentes casos de violência praticados por usuários de crack, a droga se mostra cada vez mais como um problema de saúde crônico na cidade do Rio. Antes concentrados apenas nas cracolândias do subúrbio e nos canteiros da Avenida Brasil, os usuários de crack agora também estão presentes em locais como a Central e a Lapa, que só teve policiamento reforçado após a morte de um estudante a facadas na madrugada de domingo (1). 

No dia seguinte, mais de 50 usuários da droga foram recolhidos da região. Para especialistas, as políticas de assistência a usuários de drogas da Prefeitura, como a internação involuntária e a inexistência de iniciativas de inserção do usuário na sociedade, são “ultrapassadas” e não garantem eficácia. A questão também deve ser encarada como problema social e de saúde, e não de segurança.

A internação, depois de ser realizada de maneira forçada, tem monitoramento muito limitado, preza pela completa abstinência do usuário e não garante assistência depois da internação, quando o usuário volta para as ruas. Muitas vezes sem residência fixa e completamente marginalizado, o usuário retoma o consumo. Além disso, para financiar o vício, cometem pequenos delitos, como furtos, práticas cada vez mais recorrentes. No Rio, as políticas insistem em manter um caráter proibicionista e repressivo, ao contrário das tendências mundiais, sem levar em conta alternativas mais eficazes e humanas para o tratamento do problema. Verifica-se que o número de recaídas em casos de internação compulsória gira em torno 97%, e, no caso de países com altas taxas de consumo em heroína e cocaína, as taxas de consumo e morte por uso de drogas não foi reduzida.

A diretora do Instituto Igarapé e especialista em redução da violência e política de drogas, Ilona Szabó explica de que forma as ações públicas voltadas para a dependência química no Rio são ineficientes. Para ela, o principal problema é a inexistência de uma rede de atendimento integrada, unindo no processo as equipes que vão até às cracolândias, que devem criar laço de confiança com os usuários, e os consultórios de rua, responsáveis por atendimentos emergenciais e de assistência cotidiana.

“A solução é criar uma estratégia de saúde pública, criando uma rede terapêutica integrada. Para mostrar como funciona e não é difícil, isso é feito em cidades como São Bernardo do Campo, em São Paulo. Temos que implantar uma série de equipamentos públicos contra o problema, começando pelas equipes atendendo nas cracolândias, criando laço de confiança com as pessoas, e ali elas podem entrar no processo de ajuda. Nesse sentido, a presença da polícia atrapalha, pois envia duas mensagens opostas: a da ajuda e a da repressão. No Rio existem poucas equipes de consultórios de rua, e elas vêem seu trabalho prejudicado pelas ações de recolhimento forçado”, explica.

De acordo com a assessoria da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o Rio conta com os Centros de Atenção Psicossociais específicos para atendimento a usuários de álcool e drogas (CAPSad) “para os públicos adulto e infantil e que também têm capacidade para atender dependentes químicos”. Nos CAPSad, os tratamentos são específicos às pessoas com dependência de crack e alcoólica, além de outras drogas, mas “o tempo de permanência voluntária no espaço dependerá do tratamento, mas deve ser inferior a 15 dias”. Também questionadas sobre iniciativas previstas para minimizar os impactos do uso da droga, a Secretaria de Desenvolvimento Social e a Polícia Militar do Rio, que atuam de forma conjunta com a SMS, não retornaram até o fechamento da matéria.

Para Ilona Szabó, o recolhimento forçado impede a criação de laço dos usuários com os agentes do estado. Além disso, a abordagem nas cracolândias é feita em parceria com a Polícia Militar, que não inspira a confiança dessa população vulnerável, o que dificulta ainda mais a criação do vínculo. A falta de um tratamento personalizado, observando as dificuldades de cada usuário, também impede os resultados positivos.

“Pra começar, a gente não tem uma política integral, e as políticas do Brasil são todas pela metade e são ultrapassadas, não condiz com o que funciona de fato. Explico porque a gente é contra a política do Rio de Janeiro. A questão da internação involuntária é muito problemática e atinge positivamente uma parcela mínima. Essa questão de você generalizar o recolhimento involuntário é um problema. Na rua, na hora do recolhimento, a ação é conjunta entre a Polícia e Secretaria de Desenvolvimento Social. Dessa forma, você manda duas mensagens diferentes para eles. São pessoas cuja principal característica é a vulnerabilidade social, que vêm de uma série de abusos, seja dentro de casa, na comunidade, pela Polícia, com problema social crônico, que sofreu toda violência que possa imaginar”, revela.

Ilona também explica que o tratamento deve começar com políticas de redução de danos, como a prevenção às doenças transmissíveis e ao compartilhamento de cachimbo. A especialista também comenta sobre os CAPSad, onde não é realizado o processo de triagem dos usuários, definindo o tipo de tratamento personalizado para cada um deles, e que a internação compulsória deve ser feita apenas em casos extremos.

“O segundo equipamento público são os CAPSad, modelos de atendimento 24h, que é um atendimento ambulatorial, ou seja, o usuário não está internado. Deveria ser realizado nesses CAPS um processo de triagem, analisando cada caso. Alguns se justificam a internação, caso ofereçam perigo a si mesmo, outros não. Também não adianta o mesmo tratamento para drogas e álcool, deve ser individualizado e cada um tem seu tempo. A internação é uma medida cara e o resultado é pequeno. Atinge apenas 2%. Não adianta generalizar”, diz.

Em pesquisa realizada pela Fiocruz, considerada a maior já feita no estudo do crack, indicam números menores aos que atualmente orientam as políticas públicas com relação ao crack e às drogas no Brasil, o que gerou polêmicas. No levantamento, foram registrados 370 mil usuários regulares de crack e similares nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal.  Em números absolutos, o Nordeste concentra a maior parte dos usuários, somando 40% do total, o equivalente a aproximadamente 150 mil usuários. Esse dado contraria o senso comum de que o consumo é maior no Sudeste. 

Sobre a cura completa do usuário, Ilona afirma que essa visão é problemática e a sociedade deve entender que o usuário pode vir a ter recaídas e que as comunidades terapêuticas, por exemplo, para onde muitos desses dependentes são encaminhados, exigem a abstinência. De acordo com relatório do Internacional Drug Policy Consortium, programas baseados apenas na abstinência total não são suficientes para reduzir o uso de drogas e os danos associados a estas práticas. Isso mostra que a abstinência é um dos objetivos finais do tratamento e não pré-condição para tê-lo. A especialista também afirma que a falta de vontade política existe por se tratar de uma população marginalizada, que não desperta interesse do poder público. 

“O grande problema é que as políticas e tratamentos atuais enxergam a abstinência como o único sucesso. Existem uma série de drogas que não tem como não pensar em recaída, e se for visto como fracasso, você não motiva. Tem que reduzir os danos, mesmo que a pessoa ainda faça uso da droga. Isso que a sociedade não entende. Em São Bernardo, existem as residências terapêuticas. Os usuários que não têm pra onde voltar ficam em abrigos especializados, são monitorados e acompanhados. Parece que é caro, mas é muito mais barato do que prender a pessoa, que é duas vezes mais caro do que tratar. O que a gente vê no Rio é um discurso humano, mas o recolhimento forçado é feito pela Polícia, sem que nos digam o que é feito com o usuário depois da internação. Temos que criar de fato essa rede terapêutica, e temos a receita brasileira para isso. É feito assim por ser essa população e opinião publica não entender. O que fazem é limpar e tirar de cena, mesmo que não resolva”, critica.

Ilona também garante que o problema não é a ausência de recursos, mas sim o fato de que prefeituras e governos estaduais preferem terceirizar o problema e não construir uma rede de saúde pública integrada, e acabam enviando dependentes para instituições, como as comunidades terapêuticas que não tem capacitação para tratar destes dependentes. Não é um problema único da prefeitura do Rio.. “O Ministério da Saúde tem bastante dinheiro pra implementar, as Prefeituras preferem terceirizar e repassar para outros o problema, ao invés de criar rede própria. Porque dá trabalho. Ai, os usuários vão para lugares e instituições sem nenhum protocolo de tratamento, cada um faz da maneira que quiser. Estão enviando o problema para alguém que não tem capacidade de resolver. Nós temos recursos, dinheiro, mas falta boa vontade política”, finaliza.

*Do programa de estágio do Jornal do Brasil