As manhãs da última semana foram marcadas por um cenário que se repete anos após anos no principal transporte sobre trilhos do Rio de Janeiro. Trens enguiçados, estações lotadas, passageiros caminhando pela via férrea, atrasos na circulação das composições e horas de paralisação no sistema foram as cenas presenciadas durante quatro dias seguidos de falhas técnicas na malha da SuperVia, que transformaram a vida do carioca em caos. Revoltados, passageiros depredaram composições e chegaram a incendiar um dos trens avariados. No “diário” da SuperVia, os relatos de precariedade no serviço aparecem desde o primeiro dia em que a concessionária assumiu no estado, no dia 02 de novembro de 1998, Dia de Finados, com o slogan “Melhorando a cada dia por você”.
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A Flumitrens (Companhia Fluminense de Trens Urbanos) foi privatizada no dia 15 de julho de 1998, na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, pelo valor de R$ 279 milhões e como parte integrante do Programa Estadual de Desestatização (PED), do governo de Marcelo Alencar. Na época, o então secretário de Fazenda, Marco Aurélio Alencar, afirmou que o Estado havia investido mais de R$ 500 milhões na companhia, nos quatro anos anteriores. No dia 2 de novembro, a SuperVia, formada pelas empresas espanholas Construcciones e Auxiliar de Ferrocarriles S/A, assinou com o governo carioca a concessão do serviço por um prazo de 25 anos. O então diretor do grupo, Roberto Macias, assumiu o compromisso de modernizar em três anos todo o sistema ferroviário do Rio, deixando-o digno de primeiro mundo, inclusive instalando ar condicionado nos trens de todos os ramais. No entanto, pediu um pouco de paciência aos usuários, que teriam que conviver por "um tempo a mais com a cara feia dos trens da cidade".
A estreia da SuperVia rendeu muitos comentários e destaque na imprensa brasileira, mas as manchetes não repercutiram da forma esperada pela companhia. Um acidente em uma das linhas da Baixada Fluminense deixou o sistema paralisado durante todo o dia. Passageiros tiveram que descer dos vagões e caminharem até a plataforma. Na Central do Brasil, um protesto de vendedores ambulantes proibidos de comercializar mercadorias nos trens reuniu centenas de pessoas. O diretor de operações da SuperVia, Ronaldo Coutinho, tentou acalmar os ânimos, garantindo que a concessionária estava pronta para investir mais de R$ 1 bilhão na recuperação das composições, até 2001.
Dois dias depois, 5 de novembro, dois trens reformados descarrilaram e, num outro episódio no mesmo dia, uma composição colidiu com dois ônibus em uma passagem de nível, matando 4 pessoas e ferindo 32. No descarrilamento, passageiros pulavam do trem enquanto ele ainda estava em movimento. A SuperVia justificou o fato pela precariedade nos ramais da Baixada Fluminense. No dia 7 de novembro, outro descarrilamento parou o sistema por mais de três horas. Na contabilidade final, foram quatro dias de incidentes e caos na primeira semana em que a SuperVia assumiu o serviço.
A SuperVia recebeu de herança da Flumitrens as composições enferrujadas, pichadas e lentas. Com o recurso inicial de R$ 180 milhões disponibilizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a SuperVia conseguiu aumentar a sua frota de 50 para 85 composições, recuperando 35 delas que estavam encostadas na Central do Brasil. As condições precárias dos trens tiveram como ponto de partida a superlotação, que atingiu seu ponto crítico em meados da década de 80.
A falta de cuidados mínimos com as composições e os atos de vandalismo, somados à falta de investimento público, foram os componentes que levaram ao colapso da malha ferroviária. Ao se livrar da manutenção dos 225 quilômetros de trilhos, o governo do Estado transferiu para a SuperVia uma “bomba relógio”, cujos efeitos são esses que estão explodindo nos últimos dias, causando um sentimento de revolta e descredito dos passageiros que há anos aguardam por melhorias no serviço.
Em 1983, o sistema de transporte ferroviário ainda era eficiente no Estado, com boas condições de segurança e preço de passagem acessível. A média de passageiros nesse ano era de 80 mil pessoas, diariamente. A qualidade do serviço atraiu mais usuários e no ano seguinte, a companhia registrou um número record de passageiros, cerca de 1 milhão e 100 pessoas circulavam pelos trens do Rio. Sem novos investimentos para a crescente demanda, teve início o processo de sucateamento do sistema sobre trilhos e os problemas começaram a afugentar os usuários mais exigentes. Em 1985, o número de usuários caiu para 900 mil e a queda foi ainda maior nos anos seguinte. Em 1990, os trens já estavam degradados pela má conservação e pelo uso inadequado das pessoas. Várias composições burlavam as normas de segurança e transitavam entre as estações com as portas abertas, oferecendo riscos para os cerca de 500 mil passageiros / dia.
Quatro anos antes da SuperVia assumir a concessão do serviço, o sistema ferroviário conheceu um novo e preocupante problema: os passageiros clandestinos. Na época, as estatísticas comprovavam que o trem não era mais a preferência carioca, apontando para um movimento de apenas 300 mil pessoas por dia, sendo que as estimativas eram de que 100 mil deles haviam ingressado de forma irregular nas estações, sem pagar passagem.
Trem ainda é o transporte ideal, garante especialista
A ausência de sinal, os pontos de parada definidos e os horários rigorosos fazem do transporte ferroviário o melhor do mundo, na opinião do especialista em Transportes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Alexandre Roujas. As principais qualidades do sistema oferecem ao trabalhador uma opção segura para ele chegar ao seu emprego sem atrasos e sem o estresse natural dos outros tipos de transporte que depende do bom fluxo das estradas e vias urbanas congestionadas. No caso da malha ferroviária do Rio, Alexandre acredita que os constantes problemas que estão desgastando a relação entre companhia e usuário são provenientes de “uma concepção do século passado”, quando o sistema era eficiente para sua proposta social e considerado o maior da América Latina.
Alexandre comparou o transporte de trens do Rio ao da capital paulista, que também tem 225 quilômetros de extensão e também sofre com os reflexos dos duros anos de sucateamento e falta de investimentos. Na década de 90, o estado de São Paulo cumpriu a promessa de modernizar a sua frota, levando outras melhorias para as plataformas, que ganharam mais espaço e cobertura. No Rio, os trens ganharam a preferência da população e a superlotação foi inevitável.
“Os problemas foram se acumulando e causando a degradação do serviço. Quem assumiu a concessão ficou também com a responsabilidade de recuperar o sistema e as composições fornecidas pelo Estado. Só que este é um serviço cuja manutenção é muito cara e o dinheiro da SuperVia não está sendo suficiente para recuperar o sistema. Ao contrário de outros meios de transporte urbano, os trens exigem cuidados técnicos de alto custo e especializado. Então, é necessário um grande número de usuários pagando pelo serviço para compensar os cofres da concessionária e, assim, ela reverter em investimentos e na boa prestação de serviço. É uma relação de proporcionalidade”, explicou Alexandre.
Pressionada a apresentar soluções a uma clientela cada vez mais exigente e já acostumada com os avanços tecnológicos, a SuperVia começou a fazer “gambiarras” na rede e as medidas paliativas já não conseguem mais esconder o sucateamento geral do sistema. Alexandre considerou que os recentes investimentos da Odebrecht TransPort em sinalização deu mais segurança aos clientes, mas as soluções isoladas são encobertas pela imensidão de problemas. “Esse foi um passo importante e bom investimento, mas ele não aparece em meio ao caos que se transformou o sistema ferroviário do Rio”, disse ele.
Segundo Alexandre, o ramal que mais recebeu investimento da SuperVia foi o de Deodoro, na Zona Oeste da cidade, por receber a maior demanda de passageiros, 46% do total registrado diariamente. “Como o foco é Deodoro, outros ramais ficam desprestigiados e apresentam mais falhas técnicas”, destacou o especialista. Uma outra deficiência grave apontada por Alexandre diz respeito à logística do sistema. Ele explicou que um ramal é ligado por várias linhas e quando uma delas tem que ser interrompida por qualquer anormalidade, todas as outras são prejudicadas. “O ideal era encontrar um caminho para desmembrar as linhas e ramais”, comentou.
O sistema que está em operação desde os anos 30 já está agonizando e precisa de uma revisão completa e urgente. “As concepções sobre transporte urbano já mudaram, o perfil do público usuário já mudou e o serviço parou no tempo. O diretor de operações da SuperVia anunciou que o sistema de monitoramento foi unificado e modernizado, mas os resultados não vão chegar da forma esperada, porque os trens continuam sucateados, com peças ultrapassadas e desgastadas, até o piso das composições estão furados”, disse Alexandre.
Ele questionou também a funcionalidade das estações. “Será que elas ainda estão nos locais certos? Podemos observar os acessos dessas estações, eles são ineficientes para a atual demanda, são entradas de acesso estreitas, complexas, não ideais para portadores de deficiência e fica evidente que a concessionária não conseguiu acompanhar as mudanças ocorridas no perfil de consumo. Sem contar que o sistema de áudio é falho e a sinalização pior ainda”, detalhou o especialista.
Para Alexandre, um dos principais problemas da SuperVia é a precária comunicação com o seu público, o que pode ser interpretado como falta de preocupação e cuidado com a sua clientela. “Eles não sabem dialogar com o usuário. Na era da tecnologia, podiam usar as redes sociais a seu favor, mas não o fazem. Até o sistema de áudio dos trens não funciona e eles deixam as pessoas sem informação. Isso é uma falha considerável, talvez a maior de todas, porque causa revolta”, disse Alexandre.
Uma solução citada por Alexandre para resolver as questões mais urgentes é a parceria entre governos estadual e municipal para integrar os transportes públicos, como já acontece com o Metrô. “Num momento crítico como vivenciamos essa semana, com a paralisação de ramais, a SuperVia devia contar com o apoio do município, ter o deslocamento de ônibus para as estações mais afetadas e resolver rapidamente o deslocamento dos usuários até os seus destinos. Para isso, a questão da mobilidade tem que ser revista e com bastante atenção. Tem que ter o acesso dos trens a outros modais”, destacou ele.
Com relação à passagem de nível, Alexandre acredita que esta estrutura não representa um problema grave e destaca que ela ainda é usada como alternativa de acesso em diversos outros países. “Essa é uma questão de educação da população. Tem a Cruz de Santo André, o motorista tem que obedecer a sinalização. No Rio de Janeiro, as passagens costumam ter uma boa manutenção e a sinalização raramente apresenta defeito”, contou. Alexandre criticou os atos de depredação dos trens ocorridos durante a semana e nos últimos anos. "O trem é do povo. Quando é depredado, a reposição de peça é demorada e cara, é um material importado”, opinou Alexandre.
Presidente da SuperVia pede paciência e promete mudanças para cinco anos
Após quatro dias seguidos de problemas técnicos na circulação dos trens, na última semana, o presidente da SuperVia, José Carlos Cunha, pediu desculpas ao usuário, durante entrevista ao telejornal “Bom Dia Rio”, da Rede Globo. Ele prometeu 60 novas composições circulando na cidade até o final do ano e estimou que o sistema feche o balanço com 500 falhas em 2013, um índice menor que do ano passado. Cunha anunciou que a SuperVia investiu na comunicação com o passageiro e colocou uma equipe formada por 160 jovens aprendizes para dar orientações nas estações.
Cunha admitiu que a logística do sistema é complicado e de difícil reversão em momentos de pane. O presidente da SuperVia pediu o apoio da população e prometeu que os problemas e falhas serão completamente sanados num prazo entre quatro e cinco anos. “São questões que precisamos de tempo para resolver”, justificou.
*Colaboração: Lucyanne Mano