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Três ex-presidiários estreiam hoje uma peça autobiográfica no Consulado da França

Marcos Tristão -
Durante ensaio realizado no teatro da UniRio da peça que estreia hoje, Edson Sodré, sentado à mesa, Edson de Souza, Adriano Oliveira e o diretor, Luan de Almeida
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Condenado a 29 anos de prisão por sequestro, o capixaba Edson Sodré, 57 anos, estava no Complexo Frei Caneca, no Estácio, na Zona Norte, quando entrou para o grupo de teatro do presídio. Ali, os detentos podiam não apenas fazer teatro, com um auditório de 1.500 lugares, como estudar francês, inglês, consultar livros na biblioteca e dispor de cubículos individuais. “Me disseram que por debaixo do palco italiano havia uma manilha, e só entrei para o grupo porque queria fugir”, recorda ele, que está há 12 anos em regime semiaberto. Com muita dificuldade, os colegas que planejaram a fuga haviam comprado marreta, ponteiro e macaco hidráulico. As ferramentas, porém, sumiram. “Acabou que continuei nos ensaios e me apaixonei por teatro”, exulta. Detalhe: a peça encenada foi “A fuga”, do americano Tennessee Williams.

Sodré se apaixonou pelo teatro como ator e autor, e foi fundamental para o projeto “Teatro na prisão, uma experiência pedagógica em busca do sujeito cidadão”, iniciado em 1997 pela fonoaudióloga Nathalia Fiche, professora de Voz e Movimento da UniRio, na Praia Vermelha, Zona Sul. “O projeto nasceu sob a inspiração de um modelo semelhante da Universidade de Michigan, nos EUA, e da oficina de Paul Heritage, professor da Queen Mary University, de Londres”, resume. E hoje, um resultado dessa experiência pode ser conferido no Consulado da França, no Centro, às 19h, na estreia da peça “Dois neurônios numa mente suja”. A entrada é franca.

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Durante ensaio realizado no teatro da UniRio da peça que estreia hoje, Edson Sodré, sentado à mesa, Edson de Souza, Adriano Oliveira e o diretor, Luan de Almeida (Foto: Marcos Tristão)

O texto de Sodré é encenado por ele e outros dois ex-detentos, o carioca Adriano Rodrigues de Oliveira, 46 — condenado a 58 anos de prisão por assalto a banco, em liberdade condicional há dez anos —, e o paulista Edson Souza, 49 — 29 anos de cadeia por latrocínio (roubo seguido de morte), dos quais cumpriu 24. O grupo teatral chama-se Kriadaki, e a direção é de Luan de Almeida, assistente de Nathalia.

Jeitão de filósofo, Sodré se inspirou na peça “Dois perdidos numa noite suja”, de Plínio Marcos. “Fiz uma licença poética, com personagens que mantiveram os nomes do texto de Plínio Marcos e planejam um assalto. Deixo a pergunta no ar: o que é mais temerário, fazer teatro ou assaltar?”, instiga o verborrágico autor, com inteligência e sensibilidade acima da média, prova viva de que a recuperação de presidiários é plenamente possível, desde que sejam oferecidas a eles as ferramentas necessárias.

Uma coisa ficou bem clara para ele: se tivesse experimentado o teatro quando era jovem não teria enveredado no crime. Sodré já criou outras cinco peças, mais duas estão em processo e ainda escreve um livro sobre a experiência com os grupos de teatro. Cita de Foucault a Diderot com a maior naturalidade — e sem nenhuma pretensão, o que não surpreende para quem já fez o Enem mais de uma vez, estudou Filosofia e Letras durante seu período de detenção, e sabe a riqueza de seus textos autobiográficos por sua capacidade de captar a cadeia na prática e na teoria. Em 2007, quando passou pelo Complexo Penitenciário de Bangu, conheceu Adriano, cuja transbordante energia não demorou a desviá-lo do crime para a encenação.

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Com seu jeitão de filósofo, Sodré discorre sobre sua vida (Foto: Marcos Tristão)

Quando Adriano foi preso, tinha apenas um filho, graduado praticante da luta tailandesa Muay Thai e orgulho do pai. Durante os 15 anos em que ficou preso, as visitas íntimas lhe deram outros quatro herdeiros. Nunca tinha feito teatro, e a vida começou a mudar quando conheceu Sodré. “A cultura tem força, podemos montar uma peça no presídio de segurança máxima e levar ao Talavera Bruce (setor feminino do complexo de Bangu)”, animou-se à época, quando os dois decidiram levar a proposta ao diretor. “A vice-diretora gostou da ideia e sugeriu que montássemos ‘Os saltimbancos’, de Chico Buarque. Beleza pura, vamos fazer uma peça de assaltantes de banco, mole demais”, lembra, divertido e gesticulante. “Quando chegou o texto, tinha de dizer a fala do jumento ‘trabalhei na roça a vida inteira’... e quem era esse tal de Chico Buarque de Holanda, que fugiu da ditadura, que ditadura era essa? Qual é a dessa mulher?”, pensou, aturdido, sobre o texto escolhido pela vice-diretora. Até que compreendeu que se tratava de um clássico sobre a paz e a liberdade. “Essa malandra fez a minha mente”, recorda, já mordido pela mosca do teatro. A peça foi apresentada no Talavera e no presídio Joaquim Ferreira, no complexo presidiário de Gericinó, na Zona Oeste.

Depois, os dois escreveram “A semente”, peça autobiográfica sobre um homem que passa vários anos na cadeia, sai e volta, quando reencontra a criminalidade e vários problemas familiares. “O texto mostra o valor da educação, aborda a prevenção ao uso de drogas, gravidez indesejável e doenças sexualmente transmissíveis”, relata Sodré. “Dá voz a pessoas que nunca tiveram oportunidade de falar”, acrescenta Adriano. E daí surgiu um novo texto, “O ator como protagonista”.

Outro que entrou para as artes cênicas, até então invicto, foi Edson de Souza, que logo aderiu à experiência proposta por Nathalia. “Gostei e comecei a ocupar a mente com o teatro”, sintetiza. O grupo montou “O pagador de promessas”, de Dias Gomes. Na falta de atores, Souza representou oito personagens diferentes, “mudando o tom de voz e o gestual”. O resultado não poderia ser mais gratificante: “Mudei através do teatro. Parei de cheirar, de fumar e estou em liberdade, não devo mais nada à Justiça”, comemora. Quando saiu da cadeia passou muita dificuldade, “comi comida do lixo, dormi na rua, mas entrei em contato com a UniRio e agora estou aqui!”.

Os três escaparam de vínculos com as facções e passaram por tempos de detenção relativamente melhores do que os dos dias atuais, em que as celas individuais desapareceram e mais de dez pessoas são amontoadas em espaços onde não caberiam mais do que quatro. Viraram, literalmente, a universidade do crime. “O lugar mais seguro e disputado das celas é o chamado sarcófago, embaixo da cama de cimento, onde a pessoa consegue se proteger de ser pisoteada. O estado não faz o mínimo previsto na lei: prover a educação ao povo”, critica Sodré.

Marcos Tristão - Com seu jeitão de filósofo, Sodré discorre sobre sua vida