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'Indesejáveis' mais vulneráveis

Tese associa atual cenário no estado e no país às práticas nazistas do Terceiro Reich

Beto Herrera/Jornal do Brasil -
"Não há nação no mundo que mate mais sua adolescência e juventude que o Brasil. Temos uma média de 31 assassinatos por dia no país"
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A defensora de Direitos Humanos Márcia Gatto, carioca de 52 anos, nunca poderia imaginar que sua tese de doutorado — “Os indesejáveis, das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento aos sujeitos indesejáveis no Rio de Janeiro” — defendida em dezembro de 2017 no Programa de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), estaria tão atual. No Dia Internacional dos Direitos Humanos, essa coordenadora da Rede Rio Criança, que também ocupa a presidência do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, traz à tona sua reflexão, de que o cenário político atual coincide com a multiplicação de leis e inciativas da ideologia nazifascista da Alemanha no Terceiro Reich. Gatto avista cenários sombrios no governo de Wilson Witzel, “com a provável redução da maioridade penal e a permanência do Departamento Geral de Ações Sócio Educativas (Degase) nos mesmos moldes de superlotação, insalubridade e reincidência no crime para os que conseguem sair de lá”.

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"Não há nação no mundo que mate mais sua adolescência e juventude que o Brasil. Temos uma média de 31 assassinatos por dia no país" (Foto: Beto Herrera/Jornal do Brasil)

A senhora vê maiores riscos às crianças e adolescentes em situação de rua no novo governo Witzel?

Com certeza haverá mais repressão para a população em situação de rua. Ocorrerão recolhimento e retiradas forçadas, internações compulsórias para crianças e adolescentes. É público e notório um governo que já declarou que haverá mais repressão e mortes. Teremos tempos muito difíceis no estado do Rio de Janeiro. Vai haver uma destinação de recursos muito grande não para a área social, e sim para a segurança pública, onde temos obtido mais recursos historicamente, com essa total inversão de valores que acha que se combate violência com mais violência. Isso não deu certo em lugar nenhum do mundo e não será aqui que vai dar. As crianças e adolescentes em situação de rua correm mais riscos, assim como os adolescentes encarcerados, que com certeza terão aumentado seu tempo de internação. A redução da maioridade penal também não vai tardar.

Poderia descrever melhor o que chama de sintomas atuais no Brasil da ideologia nazifascista do Alemanha do Terceiro Reich?

O Terceiro Reich lançou vários decretos de lei e protocolos de redução de direitos das minorias e grupos sociais. Após a saída da presidente Dilma Roussef houve uma avalanche de decretos de redução de direitos no país, como a PEC que congela os recursos por 20 anos, uma barbaridade. São cenários semelhantes às três fases do nazismo. A primeira foi a expulsão dos grupos considerados indesejáveis do convívio com a sociedade alemã, como os sem teto, a população de rua, os ciganos, prostitutas e pessoas com doenças mentais. Depois, essas pessoas foram isoladas do convívio social nos campos de concentração, incluindo os judeus, eslavos e poloneses. Por último, o assassinato dessas pessoas, chamado de solução final. Associo a primeira fase ao recolhimento forçado de crianças e adolescentes em situação de rua; e também à operação verão, a retirada forçada de adolescentes, sobretudo os negros e pobres, provenientes de favelas e periferias nos ônibus rumo às praias da Zona Sul. Já em relação à fase de concentração, comparo ao encarceramento de crianças e adolescentes no Degase.

Como a Sra. descreveria o Degase?

As unidades de internação do Degase são verdadeiros campos de concentração, insalubres, com instalações desumanas, onde não há como ressocializar nenhum adolescente. Unidades com capacidade para 200 internos já alojaram 570, como no Educandário Santo Expedito. Sobre a etapa dos assassinatos, faço analogia com os homicídios de adolescentes e da juventude negra e pobre pelo estado. Não há nação no mundo que mate mais a sua adolescência e juventude que o Brasil. Temos uma média de 31 adolescentes assassinados por dia no país. E no Rio de Janeiro, são altos os índices de morte nas intervenções policiais, pelas chamadas balas perdidas e confrontos. Enquanto no Terceiro Reich essas etapas são chamadas de fase, aqui não há essa linearidade, tratam-se de práticas que não ocorrem nessa sequência, podem até acontecer de forma simultânea.

Grupos de justiceiros fascistas estariam crescendo no estado?

Denunciamos crimes de extermínio para o mundo quando fiz parte do Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua, no início da década de 90. Fizemos um levantamento e já havia esquadrões da morte e grupos de extermínio. Hoje temos ações de grupos de justiceiros no país contra a população de rua. Vou dar um exemplo muito abordado pela mídia, daquele menino preso por um cadeado de bicicleta nu, num poste, no Flamengo em 2014. Foi ação de um grupo de justiceiros. Temos grupos assim na Baixada, com várias mortes, que declaram: se não temos segurança, vamos fazê-la. Outro grupo atuou contra crianças e adolescentes em situação de rua na Zona Sul, eles estão por aí. A partir de 2013, com a fundação do reacionário e conservador Movimento Brasil Livre (MBL), agregaram alguns desses grupos e também os defensores da ditadura militar. Enfim, temos, sim, justiceiros por aí.

Por que o caso de Fernanda Rodrigues, assassinada aos 40 anos, poderia ser emblemático em relação à próxima administração estadual?

Foi emblemático por ter sido um crime brutal ocorrido em Copacabana, na Zona Sul da cidade, com grande repercussão em 2017. Houve um grande empenho da Delegacia de Homicídios para elucidar o caso, com investigações, o que não costuma acontecer em relação às populações de rua. É um episódio que tem de servir de exemplo para a administração pública e para o estado. As pessoas em situação de rua correm muitos riscos, há justiceiros que praticam toda espécie de barbárie. Para o próprio modo de produção capitalista, essas pessoas são absolutamente desnecessárias, não têm um valor de troca. São vidas que não valem nada. Elas podem ser mortas, na maioria das vezes, impunemente.

Em suas visitas ao Degase em 2015/16, a Sra. e sua equipe verificaram superlotação e sérios problemas. Houve alguma mudança?

A situação do Degase é muito grave. Há 11 anos, foi deliberado pelo Conselho Estadual da Criança e do Adolescente o fechamento do Educandário Santo Expedito (ESE), que integra a instituição. A deliberação foi aprovada e o fechamento nunca ocorreu, pelo contrário, ele sempre foi considerado a unidade que recebe os adolescentes mais velhos, a partir de 16 anos. No meio deste ano, a juíza Julia Glioche determinou o esvaziamento gradual do ESE, até o seu fechamento. É normal o ESE, o Dom Bosco e o João Luiz Alves terem mais que o dobro da capacidade. Foi no ESE que vimos uma cena horrorosa, das celas com plásticos e papelões para o rato não entrar. Ratos e lacraias entravam e passavam por cima dos meninos dormindo. Todos têm problemas de pele, são masmorras, campos de concentração.

Vários meninos internos são filiados a facções criminosas. O Degase funcionaria como um multiplicador do crime?

Alguns meninos não pertencem a nenhuma facção e têm de ficar isolados dos outros. A maioria, porém, pertence. Para eles, é uma forma de pertencimento, porque esses adolescentes, com os quais a sociedade não sente nenhuma empatia, não são ligados a outros grupos. Eles têm de se sentir úteis e pertencentes a algum grupo. Não é que seja um depósito. Os adolescentes do Degase reproduzem o sistema prisional: entrou no crime, cometeu algum ato, está ligado a alguma facção. Tem o PCC, o Comando Vermelho, que crescem com a participação de muitos adolescentes, às vezes até de crianças com 10 anos.

Quais as principais causas de detenção de menores no Degase e como reverter essa dramática situação?

A maioria está lá por conta do tráfico de drogas, considerado uma das piores formas de trabalho, muitas vezes análogo à escravidão. Muitos entram no tráfico para ajudar a família, eles não conseguem emprego formal e é a porta que se abre. Falta para eles a oportunidade de estudar, de concluir o estudo sem precisar trabalhar. São meninos inteligentes, ambiciosos, que também merecem as mesmas oportunidades que outros conseguem por ter uma classe e cor diferenciadas. A maioria deles é vítima de violência, e não autores de violência Ninguém sai impune do Degase. Nessas condições ninguém é ressocializado. Em geral o menino é preso, vive situações horrorosas e sai de lá mais revoltado e volta a cometer atos infracionais.