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Presidente da Comissão de Direito Penal do IAB propõe mudanças na legislação de drogas

Entrevista - Marcio Barandier: Efeito discriminatório de uma lei

Divulgação -
Marcio Barandier
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O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) apresentou, na última quinta-feira, à Comissão de Atualização da Lei de Drogas, em São Paulo, dez propostas de mudança na legislação. Essa comissão, formada por juristas, foi instituída pelo Congresso Nacional. E seu objetivo é oferecer uma proposta de alteração à atual Lei de Drogas, promulgada em 2006. Uma das reivindicações mais fundamentais do IAB é o fim do enfrentamento bélico ao comércio varejista de drogas nas áreas urbanas. Nesta entrevista, o presidente da Comissão de Direito Penal do IAB, Marcio Barandier, diz que a política de combate ao comércio de drogas é um rotundo fracasso, em que as mortes de suspeitos, policiais e inocentes ocorrem numa constância que beira o absurdo. Barandier discorre sobre esse e outros temas sob uma abrangência mais nacional. Mas quem mora no Rio perceberá que o advogado está se referindo também ao que vem acontecendo justamente aqui. O IAB, assim, aquece um debate importantíssimo sobre segurança.

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Marcio Barandier (Foto: Divulgação)

A proposta do fim do enfrentamento bélico ao comércio varejista de drogas nas áreas urbanas remete às favelas e às periferias da metrópole do Rio, onde há mais de três décadas esse combate ocorre com inúmeras violações de direitos humanos. Quais são os argumentos jurídicos contra esses procedimentos?

A política criminal de repressão ao comércio de drogas proibidas no Brasil é militarizada, bélica e “com derramamento de sangue”, na expressão de Nilo Batista (advogado e ex-governador do Rio). O direito penal é usado como pretexto a uma guerra irracional, que desperdiça fortunas de dinheiro público e provoca uma quantidade inaceitável de mortes, inclusive de policiais e de inocentes moradores. A atual Lei de Drogas induz a esse estado de coisas sem atingir seu suposto objetivo de prevenção geral. Precisa ser reformada. O Brasil é o país que mais mata no século 21. E tudo isso sem resultado positivo, pois a oferta e a demanda jamais foram afetadas.

A continuidade da oferta e da demanda das drogas é um dos argumentos do IAB contra essa política bélica?

Sem dúvida. O objetivo anunciado da Lei de Drogas é o de proteger a saúde pública, mas ela promove o inverso, inclusive intimidando o dependente que precisa de apoio. Essa política bélica é um fracasso mundial. O Brasil precisa olhar para as experiências positivas de países como Portugal, Suíça, Uruguai, entre outros, que adotaram políticas menos proibicionistas, com programas de redução de danos, apoio aos dependentes e investigações inteligentes que evitem o ingresso de drogas e armas no território nacional. No Brasil, se fala em mais uso da força, o que poderá nos levar a uma situação semelhante à da Colômbia, nos anos 1980, ou do México, mais recentemente. Medellín deixou de ser a cidade mais violenta do mundo para se tonar uma cidade modelo premiada, quando optou pela política de redução de danos, de redução da violência, com investimentos em educação e na geração de empregos formais, com parcerias público-privadas.

Quais consequências do encarceramento originário dessas ações?

Um estudo recente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra que 70% dos presos em flagrante por tráfico de drogas na cidade e na Região Metropolitana do Rio de Janeiro são primários, sem antecedentes criminais e estavam sozinhos, desarmados e com pequena quantidade de droga. E apenas 6% das prisões decorrem de trabalho de investigação. Opera-se no varejo, enchendo as prisões de jovens que, se fossem brancos e ricos, seriam tratados como usuários.

Uma das medidas propostas do IAB remete à redução das penas e aplicação de sanções diferenciadas para pequenos e grandes traficantes. Nesse sentido, como o IAB analisa a questão de adolescentes internos? E como essas distinções de penas é vista pelo IAB no sistema prisional de adultos?

A Lei de Drogas atual, na prática, trata o pequeno e o grande traficante quase sem distinção, e duplicou a quantidade de adolescentes e jovens presos. A situação dos menores, e também dos jovens adultos, encarcerados sob a acusação de tráfico de drogas, é terrível. A grande maioria foi flagrada com pequenas quantidades. Na prisão ou internados em unidades para menores, a situação deles se agrava. Há uma contradição de ideias frequentemente repetidas por quase todos: é preciso aumentar as penas para reprimir a criminalidade, e a prisão é uma escola do crime, só piora as pessoas. Ora, não faz sentido: se a prisão é uma escola do crime, para que pôr mais jovens nela e por mais tempo, sobretudo por condutas sem violência?

Como se dá a questão da isonomia de apenados de ilícitos de drogas com crimes como estupro? A criminalização das drogas exerce influência sobre sentenças judiciais no Brasil?

Não há razão para tratar o tráfico de drogas com mais severidade do que crimes evidentemente mais graves como o estupro e o homicídio. É claro que as penas de estupor e homicídios são maiores quando se lê o Código Penal, mas, na prática, é comum o crime de tráfico ter um tratamento mais duro, principalmente com relação à concessões de benefícios. O comércio de drogas associado ao tráfico, em si, não é violento. A violência decorre da clandestinidade do comércio e do consumo de drogas.

O senhor poderia fazer um histórico da criminalização das drogas no Brasil? Houve algum tipo de influência dos Estados Unidos?

Tanto no Brasil como nos EUA a proibição de certas drogas surgiu vinculada a um forte interesse de controle social, notadamente dos negros, com viés, portanto, racista. O modelo bélico atual tem origem na ideologia de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra norte-americana da década de 1950, acolhida pela ditadura militar brasileira. Nos anos 1980, isso se intensificou, com a “guerra às drogas” promovida pelos EUA, que influenciou também os tratados internacionais sobre o tema. Mas os EUA hoje já começam a reconhecer o fracasso dessa política, que logicamente também escondia interesses econômicos em determinados países.

Como definir a quantidade específica de drogas para a caracterização do uso pessoal?

Primeiro, a posição do IAB é de descriminalização total do porte de drogas para uso próprio. Quanto à quantidade, entendemos que o ideal é a fixação de critério objetivo claro para a distinção entre tráfico e porte para uso. A redação da lei atual é extremamente vaga. Na rotina policial e forense, o jovem negro, pobre, da favela com pequena quantidade é traficante e o jovem branco, de classe alta, da Zona Sul é usuário. Há modelos diferentes adotados por alguns países, mas o importante é estabelecer quantidades determinadas que presumam que o porte é para uso próprio. Claro que é possível comercializar quantidades pequenas, mas essa é uma prova que o Estado deve produzir, se for o caso. Atualmente, há uma inversão desse ônus, de modo que o usuário, mesmo com quantidade pequena, acaba tendo que provar que a droga é para uso recreativo.

A exclusão do crime de associação para o tráfico é uma das medidas propostas do IAB. O senhor poderia explicar por quê?

O IAB entende que crime autônomo de associação para o tráfico não se justifica, pois o Código Penal tipifica o crime de quadrilha e ainda há a Lei de Crime Organizado. Na prática, o crime de associação para o tráfico é imputado a pequenos traficantes com o mero objetivo de elevar drasticamente a pena, normalmente sem prova de uma efetiva estrutura organizacional para cometimento de crimes de tráfico, tudo situado num campo difuso. Prevalece a presunção de que o jovem negro, da favela, com alguma quantidade de droga, em razão do local em que é preso, “certamente” está vinculado a um grupo maior, muitas vezes sequer identificado. Muitos são condenados sozinhos por associação para o tráfico, outros estão em meras situações de coautoria. A legislação já prevê os crimes de quadrilha e de organização criminosa. Se forem provados, é o suficiente, e podem coexistir com o tráfico. A coautoria, por outro lado, pode ser uma circunstância agravante.