O governador João Doria (PSDB) decidiu não reconduzir ao cargo o atual ouvidor da Polícia de São Paulo, Benedito Mariano, e, para seu lugar, escolheu o terceiro da lista tríplice, o advogado Elizeu Soares Lopes, que trabalhou na gestão Fernando Haddad (PT).
A decisão causou surpresa por ter ocorrido sem aviso prévio e no mesmo dia em que a Ouvidoria apresentaria seu balanço anual de trabalho, no qual apontou, entre outros fatos, o aumento das mortes de civis provocadas por policiais da Rota, a tropa de elite do estado.
“Fui pego de surpresa. Fiquei sabendo às 8h30 de hoje. Ninguém do governo sinalizou de que teria a decisão”, disse Mariano. "O governador foi muito deselegante comigo."
Ligado ao PCdoB e ao movimento negro, o novo ouvidor foi secretário adjunto de Promoção da Igualdade Racial da gestão de Fernando Haddad (PT) na Prefeitura de São Paulo. Ele também atuou como chefe de gabinete da deputada estadual Leci Brandão (PCdoB).
Lopes é crítico do atual governador. No Twitter, em 2016, quando Doria disputava com Haddad a vaga de prefeito, o advogado criticou o tucano durante um debate —"um fiasco, não fala lé com cré”.
Mariano havia sido o mais votado em novembro de 2019 para formação de uma lista tríplice. Todos os nove conselheiros do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo) foram favoráveis à condução do atual ouvidor, incluindo o representante do governo paulista. Lopes foi o terceiro da lista com cinco votos.
Durante visita ao interior de São Paulo, ao ser questionado por jornalistas, o governador João Doria foi econômico ao falar do assunto. “É listra tríplice e, portanto, cabe ao governador escolher um dos três nomes. E foi feita a escolha. Ponto final.”
A decisão foi publicada no Diário Oficial desta quinta-feira (6) e quebra uma tradição da Ouvidoria, criada na gestão Mário Covas (PSDB), de sempre reconduzir o ouvidor para mais dois anos de mandato.
Deputados vinham pressionando Doria a não manter Mariano. O líder do governo na Assembleia Legislativa, Carlão Pignatari (PSDB), chegou a dizer que Mariano é “mau caráter” e deveria sair do posto. A situação piorou após ele criticar ação da PM em Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação policial em um baile funk.
“Acho que pesou a Ouvidoria estar muito atuante. Esse foi principal ponto”, disse Mariano.
“Talvez o governador não tenha me nomeado pelo que eu fiz, não pelo que eu não fiz. Esses dois anos foram os anos de maior atuação dos 25 de existência da Ouvidoria. Nós produzimos uma pesquisa sobre força policial inédita no país. Produzimos uma pesquisa sobre suicídio policial inédita no país.”
A lei determina que o governador escolha qualquer um dos nomes da lista tríplice. A divulgação no Diário Oficial é irreversível.
“É legítimo escolher o terceiro, [mas] como nunca aconteceu do atual ouvidor não ser reconduzido, faltou delicadeza de ao menos avisar uma semana antes. Para avisar a equipe, preparar uma transição. Ele foi deselegante comigo.”
Mariano disse que, na semana passada, recebeu uma ligação do secretário-executivo da Polícia Militar, Álvaro Camilo, informando que a cúpula da Segurança Pública levaria ao governador Doria um pedido de recondução dele ao cargo em reconhecimento ao bom trabalho.
“Para mim, isso é muito caro. No período em que a Ouvidoria foi mais atuante, não criou tensão com o gabinete do secretário e com o comando das duas polícias. O governador não quis conduzir um ouvidor que tinha apoio das polícias e do secretário da Segurança Pública.”
O presidente do Condepe, Dimitri Sales, que estava com Mariano na apresentação do balanço dos trabalhos do Ouvidoria, disse considerar que o governador tomou uma decisão política para atender pedido dos deputados, "sacrificando o ouvidor para agradar a bancada da bala".
“Essa decisão ocorre no contexto de disputa dentro da Assembleia Legislativa. Lá existem dois projetos, um querendo extinguir a Ouvidoria da polícia e outro para extinguir o Condepe."
De acordo com o ouvidor, ele deixa o cargo antes de terminar o relatório sobre o caso de Paraisópolis que iria detalhar os erros cometidos pela Polícia Militar na ação. O documento teria como base o inquérito da Polícia Civil, com mais de 1.100 páginas.
Mariano disse que a analise dessa documentação reforçou as declarações dadas por ele na época. “A ocorrência de Paraisópolis foi improvisada, precipitada e desastrosa, dialogou diretamente com o resultado trágico. Mesmo que as mortes tenham sido de maneira indireta”, disse.
No documento que vinha sendo elaborado haveria um mapa mostrando a localização de cada viatura no episódio, o que, segundo o ex-ouvidor, demonstraria a falha dos policiais. “A localização das viaturas no baile funk mostrava que a ação não seguiu o próprio manual da PM sobre intervenção em controle de distúrbios civis, que é deixar o máximo de rotas de dispersão”, disse.
Para o sociólogo, o novo ouvidor não terá como produzir um relatório por não ter acompanhado o assunto até agora.
No relatório anual de prestação de contas, a Ouvidoria destaca ainda a quantidade de pessoas mortes pela Rota (tropa de elite da PM paulista), que praticamente dobrou no ano passado.
Segundo o balanço do ouvidor, com base em números da Corregedoria, os policiais desse grupo mataram no ano passado 101 pessoas durante o trabalho. Em 2018, foram 51.
Para Mariano, foi a letalidade dos homens da Rota que provocou uma elevação em todos os números do estado. Em 2018, a PM matou 642 pessoas durante a intervenção policial. No ano passado, foram 716.
Somando as duas polícias, as mortes decorrentes de intervenção policial foram de 655 para as 733 anotadas, na mesma comparação dos anos.
A reportagem entrou em contato com o coronel Álvaro Camilo, mas não teve resposta até publicação deste texto.
Houve também tentativa um posicionamento do secretário da Segurança, João Camilo Pires de Campos, e o governador João Doria, mas nenhum deles se manifestou ainda.
Em nota, a Secretaria da Justiça da gestão Doria informou que "a escolha de um novo mandato de Ouvidor das Polícias a cada dois anos é uma regra prevista pela Ouvidoria. Por se tratar de um cargo de fiscalização indicado por representantes da sociedade civil, cuja função é ser o porta-voz da população, a escolha é baseada estritamente em critérios técnicos."
A Secretaria da Segurança respondeu que o posicionamento dela é o mesmo da Justiça. (Rogério Pagnan e Artur Rodrigues/FolhaPressSNG)