ARTIGOS

Forças Armadas: entre a ordem constitucional e a anarquia golpista

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Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Publicado em 13/11/2022 às 13:01

Alterado em 13/11/2022 às 13:01

Nos últimos dias, a reputação das Forças Armadas sofreu forte desgaste. Postas em um lugar estranho à ordem constitucional, a de fiscais eleitorais, os militares patinaram entre ratificar o resultado da auditoria técnica que realizaram nas urnas eletrônicas e o atendimento às demandas particulares do presidente derrotado, Jair Bolsonaro. Eterno deputado, sem a estatura de um estadista, o Messias sabe que este ciclo chegou ao fim. Entretanto, perverso, continua manipulando seus correligionários, alimentando entre eles a falsa esperança de que o resultado do pleito possa ser revertido a partir de provas cabais de fraudes nas urnas eletrônicas.

Assim, após longa espera, no dia 09/11, em nota oficial, o Ministério da Defesa (MD) afirmou que “não foi encontrado [...] nenhum indício de manipulação dos resultados que possa configurar fraude do pleito de 2022”. Parecia o fim da agonia. As últimas rodovias seriam desocupadas, as portas dos quartéis seriam desobstruídas e a transição, já iniciada, seguiria seu curso, em que pese o silêncio infantil de Bolsonaro, que, além de mau militar, como outrora dito pelo ex-presidente Geisel, também é mau perdedor.

Ledo engano! No dia seguinte, 10/11, pressionado pelo Planalto, que não deseja cessar a mobilização de suas bases populares nem admitir a vitória petista, o MD “esclareceu” que “houve possível risco à segurança na geração dos programas das urnas eletrônicas devido à ocorrência de acessos dos computadores à rede do TSE durante a compilação do código-fonte”. Que patuscada! Afinal, como bem disse o presidente recém-reeleito, fiscalizar as eleições é uma tarefa que cabe à Justiça Eleitoral, aos partidos e à sociedade civil.

Embora não tenha afirmado a existência de qualquer vício nas eleições presidenciais, em suas idas e vindas o MD manteve a esperança daqueles que cultivam o “negacionismo” eleitoral. Com uma linguagem serpenteante, incompatível com a honradez militar, o MD manteve viva a chama golpista dos que clamam aos quatro ventos por uma “intervenção federal”, pobre eufemismo para golpe militar. Embora uma quartelada não seja sequer ventilada pelo alto comando das Forças Armadas, temos que reconhecer que ela perpassa o imaginário de inúmeros militares e ex-militares, muitos dos quais marcham ao lado dos manifestantes bolsonaristas enquanto outros ocupam polpudos cargos na administração pública federal.

Ao ceder às pirraças palacianas, o MD pôs lenha na esperança golpista e contribuiu para fragilizar a imagem institucional das Forças Armadas, que por vários anos lutaram para recompô-la em face do desgaste causado pelos anos de ditadura militar. Além disso, deixou evidente a necessidade de desmilitarização da administração pública, que, dentre outras ações, passa pela bem-vinda extinção do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), cuja existência parece cada vez mais um anacronismo ou mesmo um erro político.

O Brasil não irá construir seu futuro repetindo os erros do passado. A história mostra que a deslegitimação das urnas é a antessala do golpismo tacanho, da quartelada insana, da polarização disruptiva que tanta dor, morte e destruição causaram no passado. Uma democracia liberal madura pressupõe, sim, respeitar a vontade da maioria, sem desconsiderar, por evidente, os direitos das minorias, sob o risco de tornar-se um governo demagógico-autoritário. Daí a necessidade de que a vitória de Lula seja imediatamente reconhecida por Bolsonaro, e que este possa organizar a necessária oposição democrática ao governo petista, que já costura uma ampla rede de partidos e lideranças políticas, domésticas e internacionais, para garantir uma adequada governabilidade ao país.

A novela da fiscalização das urnas pelas Forças Armadas foi ridícula. Qualquer flerte com a anarquia golpista é um crime contra a democracia. As manifestações ora em curso, financiadas por políticos e empresários, ainda serão alvo de investigações do Ministério Público e das polícias. Aqueles que hoje se utilizam das liberdades democráticas para atentar contra a democracia não ficarão impunes. Política se faz com diálogo, moderação, com a atuação dos corpos intermediários, com a participação da sociedade organizada. Mas, antes que aconteça o justo acerto de contas do Judiciário com os mentores da “intervenção federal”, a pacificação da vida nacional, liderada por Lula e Alckmin, passa necessariamente pela desmilitarização da política. A intolerância é intolerável! A leniência também.

 

Lier Pires Ferreira
PhD em Direito. Professor do Ibmec. Pesquisador do LEPDESP/UERJ

Renata Medeiros de Araújo
Mestre em Ciência Política. Advogada. 

 

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