ARTIGOS
O sequestro da racionalidade
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 06/11/2022 às 09:18
Alterado em 06/11/2022 às 09:18
Na antevéspera do segundo turno, Trump apareceu na televisão brasileira a elogiar o presidente Bolsonaro chamando-o de um dos melhores, senão o melhor, presidente que o Brasil jamais tivera. Em seguida, recomendava ao eleitor brasileiro que o reelegesse.
Me pergunto quantos votos Bolsonaro perdeu com essa publicidade intervencionista, descabida. Quem ainda acredita no bufão Trump? Mas, ressalta desta publicidade imperial a confirmação de que sempre houve um elo não tão misterioso assim entre Trump e Bolsonaro, evidente desde os primeiros dias de sua posse, desde os entendimentos pouco transparentes entre o auto-proclamado gênio das pesquisas eleitorais e delas manipulador criminoso, Steve Bannon, e o deputado Eduardo Bolsonaro, apontado por Bannon como coordenador no Brasil de uma projetada aliança de países de extrema direita na América do Sul.
O brasileiro estaria certamente se perguntando por que cargas d’água e com mandato de quem o governo brasileiro se lançaria nessa diatribe com o governo da maior potência mundial, em detrimento de nossa tradicional postura diplomática de pautar nossa política externa nos princípios da Constituição de 1988?
A resposta não tardou e nos veio em grego e tupi-guarani pelo venturoso Chanceler brasileiro diante do corpo diplomático acreditado em nosso país. Ali, nós, brasileiros, ficamos advertidos de que, na concepção do iluminado Chanceler, o Itamaraty estaria de costas para a sociedade brasileira e virar-se de frente implicaria numa adesão cega às ideias de Trump, estadista maior que, juntamente com Bolsonaro, teriam a missão de salvar o Ocidente democrático, a perigo de ser carbonizado pelas narinas do dragão amarelo.
A partir daquele momento, convenci-me de que se havia sequestrado a racionalidade no Itamaraty.
Pouco tempo depois, fomos contemplados com o "replay" da edificante reunião ministerial exibida como “tira-teima” do impedimento do então ministro da Justiça. O grande mérito da divulgação televisionada foi exibir a linguagem chula com que os ministros intervinham no debate, a inconstitucionalidade de algumas propostas, como a do então ministro da Educação a ameaçar a integridade do Supremo Tribunal Federal, a franqueza cínica do ministro do Meio-Ambiente a sugerir deixar correr a preocupação dos jornais com a pandemia, enquanto se aproveitava para “passar a boiada”, isto é, promover o desmonte dos regulamentos e das instituições de proteção ao meio ambiente.
O ministro da Economia nos deixou basbaques com seu teto de gatos para reeleger como favas contadas o presidente da República. Finalmente, o próprio presidente da República determinadíssimo em evitar que a Polícia Federal pudesse ser chefiada por alguém capaz de eventualmente trazer constrangimentos para a família ou amigos de Sua Excelência. Recomendou-se o armamento generalizado da população civil como garantia da liberdade.
A partir deste momento, certifiquei-me de que se havia sequestrado a racionalidade no Brasil.
A irracionalidade se aprofundou quando os símbolos nacionais, em especial a bandeira brasileira, foi apropriada pela ideologia governamental. Usar a camisa da seleção brasileira ou acenar o pavilhão nacional passava a ser uma identificação notória com um partido político e não com a nação como um todo.
A constatação de que se utilizavam abusivamente essas inegáveis forças maiores da nacionalidade como panfletos de uma doutrinação autoritária me fez ver a astúcia da propaganda política governamental por incentivar uma explosiva divisão entre os que se vestem com a bandeira brasileira e os que não o fazem por não quererem se aliar a um projeto político por esta ou aquela razão.
Astúcia política de profunda ressonância psicológica porque subjuga a inteligência à irracionalidade. Embaralha sinais de amor à pátria com subserviência a um governo a promover confusão entre nacionalidade e adesão a projeto autárquico.
Sequestro, cujo resgate só se faria com a alienação da liberdade de pensamento político e da Democracia.
Foi esta trama que a consciência cívica brasileira repudiou em 30 de outubro de 2022. Data em que finalmente se comemorou o bicentenário da Independência do Brasil.
*Embaixador aposentado