ARTIGOS

A morte da Independência

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 11/09/2022 às 08:40

Alterado em 11/09/2022 às 08:40

O governo brasileiro armou uma festa na praia de Copacabana. Julgava-se que na data se comemorava não só o dia da Pátria, mas também o bicentenário da Independência do Brasil. Teve esquadrilha da fumaça, salvas de tiros de canhão e desfile náutico de belonaves de países amigos. Tudo debaixo de um céu azul com que o Rio não deixa de sempre contribuir.

Saí da festa acabrunhado. Nenhuma palavra sobre os 200 anos que nos separam do Grito do Ipiranga e nenhum muxoxo sobre o que se pode esperar para o futuro de nossos filhos. A julgar pelo o que ali se disse e sobretudo sobre o que o presidente gritou puxando um coro de seguidores, imaginei estar numa arruaça de boêmios num lupanar da Lapa.

Passou assim a festa de nossos duzentos anos de Independência. Não sei o que terão pensado o chefe do Estado de Portugal e os demais presidentes de países amigos que aqui vieram em homenagem a uma data tão marcante para nós quanto o bicentenário da revolução francesa que, por circunstâncias de minha vida profissional, tive a honra de presenciar. Qualquer comparação com nosso 7 de setembro seria aviltante.

Não deixa de ser mais um desatino deste governo acintoso, despido dos mais elementares protocolos de nações civilizadas e extremamente indiferente ao julgamento sobre os usos e costumes de nosso país pela imprensa internacional. Seremos com toda razão considerados um país de bugres, desrespeitosos de nossa própria história, descuidados com a importância do vínculo nacional a nos unir a todos num destino comum.

A tribuna cívica transformada em plataforma de campanha eleitoral em que o cerimonial da República se transviou em ação entre amigos, doadores de campanha eleitoral e de afronta aos tribunais superiores do país.

Nada disso foi impensado. Ao contrário, minuciosamente programado para anunciar uma nova ordem em gestação em que os poderes da República se esvaziam e o autoritarismo se concentra numa personalidade histriônica a ameaçar uma repaginação da ordem pública onde a lei se mimetiza num quadrado de linhas imaginárias em que apenas a régua do arbítrio define fronteiras.

É sempre patético constatar a imitação do admirado pavão-mor do desrespeito às leis e à ordem constitucional, praticada com deslavado cinismo por Donald Trump cada vez mais próximo de um acerto de contas com a justiça de seu país.

Não deixa de ser premonitório que o ideólogo do caos moderno nos Estados Unidos da América, o trêfego Steve Bannon já esteja sendo algemado e levado às barras dos tribunais como vigarista lavador de dinheiro surripiado de doações para a construção do muro da vergonha do século 21 a tentar separar o México dos Estados Unidos. Bannon, o luminar escolhido como orientador de nossas plataformas digitais recheadas de inverdades e ódio. Steve, o cão de fila de um movimento internacional de autoritarismo raivoso.

Já me distanciava da Avenida Atlântica quando ouvi de um casal que passava, ele seguramente tão entrado em anos quanto eu, acompanhado de uma jovem certamente sua neta, a frase que me fez quase petrificar. “Aqui são todos lacerdistas”.

Imaginei naquela hora Carlos Lacerda a dar voltas na sepultura. Lacerda teve inúmeros defeitos, oscilou entre o comunismo de sua juventude a extremos da Direita nos anos cinquenta. Mas, não o imagino aplaudindo ou juntando-se ao barbarismo de nossos tempos atuais.

É bom sempre lembrar que Lacerda tornou-se um adversário do golpe militar de 1964 a que inicialmente se aliou. Eram outros tempos e havia uma guerra-fria que dividia o mundo em blocos rivais. Mas, Carlos Lacerda teve a audácia de juntar-se a seus adversários de sempre e em especial a JK e Jango para tentar formar uma frente-ampla que pudesse restaurar eleições livres no Brasil. O fato de que aquele movimento, se acaso vingasse, provavelmente faria dele, Lacerda, presidente do Brasil, apenas honra a dignidade política de JK e Jango.

A mesma dignidade e grandeza que hoje une dois grandes políticos brasileiros, um do PSDB outro do PT, a uma coligação de partidos, consciente de que só a retomada do crescimento econômico dentro das regras democráticas com investimento público a serviço igualmente da justiça social, poderá nos levar a uma sociedade pacificada num país destinado a participar ativamente da governança global. Não há de ser com ódio e opressão política que cumpriremos nosso destino de grandeza. Já vimos este filme.

Lacerda quando governou o Estado da Guanabara mudou o panorama da educação infantil no estado, acabou com a falta d’água, construiu o Túnel Rebouças, deu à cidade o Aterro do Flamengo. Foi, queiramos ou não, um governante trabalhador, ao contrário do que hoje vemos em Brasília onde a insânia domina o bom-senso. Na Pandemia, antes e depois dela. Sei que ao lembrar o nome de Lacerda corro o risco de ser carimbado ideologicamente. Não me assusto. Minha vida não me assombra as noites.

Apenas acho de justiça estabelecer a verdade histórica, hoje tão distorcida como os festejos do bicentenário em Copacabana demonstram. Lacerda era um homem de Direita, sem dúvida. Não era porém partidário deste regime imerso no ódio fratricida que se aprofunda neste país. Em que se defende o armamento pesado de brasileiros e uma ideologia que do grito de "independência ou morte” apenas ecoa a morte como promessa de futuro.

E transforma vidas de esperança e de progresso numa noite “brochante".

*Embaixador aposentado

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