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O Brasil não é vira-latas

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 01/05/2022 às 09:47

Alterado em 01/05/2022 às 09:48

Que há no mais alto nível do país a intenção de provocar uma desestabilização social como pretexto para fazer do Brasil uma autocracia nos moldes da Hungria, da Turquia ou até mesmo da Rússia não há a menor dúvida. É fato transparente até mesmo pelo deboche com que se trata o Supremo Tribunal Federal e, por via de consequência, a própria Constituição brasileira.

Temo, porém, estarmos trilhando senda mais perigosa e muito mais dramática de não só corroer o Estado Democrático de Direito, mas também a minar os alicerces da grandeza de nosso país e de nosso povo. E a este crime não se pode ficar indiferente.

Por mais fúteis ou primárias tenham sido as motivações do golpe militar de 64, golpe, aliás, que se iniciou em 1954, interrompido pelo suicídio de Vargas, adiado pelo contragolpe de Lott ao garantir a posse de JK, renasceu em 1961 com a renúncia de Quadros, para finalmente eclodir com a deposição de João Goulart em 1964, é forçoso nele reconhecer a influência da guerra-fria em nossas opções geopolíticas.

Hoje, a crise política parece coincidir com a óbvia deterioração do movimento neoliberal acelerado por Reagan e Thatcher, desbussolado após a crise financeira de 2008 e suas consequências em todo o sistema econômico mundial com o aprofundamento de desníveis sociais intoleráveis, degradação da classe média, remoção de redes sociais de proteção ao trabalho e ampla generosidade fiscal ao capital improdutivo.

O governo brasileiro de turno optou por permanecer atado a um sistema econômico em franca deterioração como claramente exposta pelo Brexit, pela demagogia autoritária e racista de Trump e pelo deslocamento do centro gravitacional do poder para a Ásia, nomeadamente para a China.

Estamos sem rumo. Nosso ministro da Economia mais bruxuleante de que vela soprada por ventos contraditórios. Para completar tivemos uma Pandemia muitíssimo mal conduzida no Brasil, uma ação corruptora no Congresso com o chamado orçamento secreto e uma cada vez mais assustadora corrupção nos ministérios da Saúde, revelada pela CPI da Covid, e no da Educação, em processo de descolamento diário pela imprensa, pelo TCU. Para piorar ainda mais o quadro, a par da corrupção, se constata a espúria associação entre o poder e comunidades evangélicas, destruindo irreparavelmente a imagem inatacável de uma vertente cristã.

Os procedimentos parafascistas emergem à luz desinfetante do sol e se constata, aqui no Supremo Tribunal Federal e no mundo pela inédita e unânime decisão da Corte de Direitos Humanos das Nações Unidas, a parcialidade de um juiz excessivamente adulado e claramente pouco afinado com o devido processo legal, desrespeitoso de direitos fundamentais dos acusados, hipnotizado pela mosca azul dos holofotes do poder, tatuado de corpo inteiro pelo narcisismo primário e em litígio permanente com o idioma pátrio, que lhe não concede nem indulto nem alforria.

Nada porém mais desastroso do que uma política externa conduzida de forma acrítica em relação ao trumpismo, abjetamente reverencial diante dos desatinos da equipe da Casa Branca, criminosa diante de nossos compromissos históricos com a comunidade das nações e ainda por cima arrogante, declarando-se pária com muito prazer.

Finalmente, a joia da coroa passa a ser a maior e mais destrutiva política ambiental de que se tem notícia com a demissão dos defensores institucionalmente constituídos para a defesa da Amazônia de sua fauna e bioma, e com a perseguição dos Indios que nela habitam com violências que se encaminham ao crime de genocídio.

Ao soar o ano eleitoral, o incumbente pretende reeleger-se. Com o apoio esclarecido de uma parcela da população ainda insatisfeita com a degradação dos últimos quatro anos, armada parcialmente até os dentes com armas falaciosamente compradas como se fossem para o singelo tiro ao alvo ou aos patos nos fins de semana e alimentada por uma retórica do ódio jamais vista neste país. E o processo eleitoral passa a ser adubado com promessas e certezas de fraudes e roubalheiras, em cópia carbono do guru Trump que deixou suas digitais criminosas na história dos Estados Unidos da América.

Mas aqui o incumbente comete seu mais desastrado equívoco. Ao escolher as urnas eletrônicas e o sistema de salvaguardas brasileiro, inclusive o Superior Tribunal Eleitoral, como aves rapaces da legitimidade eleitoral fere de morte o orgulho nacional.

Internacionalmente reconhecido e aplaudido, nosso sistema de votação e apuração é dos melhores, senão o melhor, do mundo. Todo diplomata brasileiro que teve, como eu, a honra de supervisionar em território estrangeiro eleições brasileiras, sabe da atenção e admiração que o processo merece seja em países em desenvolvimento seja em países desenvolvidos.

Coube-me, quando Cônsul-Geral do Brasil em Buenos Aires, viver esta experiência. Suei para conseguir um pequeno espaço no que seria na televisão argentina o equivalente ao Bom-Dia Brasil para fazer convite à comunidade brasileira e indicar os locais de votação. A rapidez, a ordem e a tranquilidade com que decorreram as eleições em Buenos Aires, motivaram um gentil convite da televisão portenha para que explicasse o procedimento eleitoral. Por longos e preciosos dez minutos, respondi como havia sido desenvolvido o sistema eleitoral, a excelência da tecnologia inteiramente brasileira com a contribuição dos melhores centros tecnológicos civis e militares. Mencionei a contribuição da Embraer no desenvolvimento do Airbus. Enfim, lavei a égua.

Agora, quando o Brasil inteiro do Oiapoque ao Chuí, como gostamos de dizer, realiza eleições de presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais num só dia e apresenta resultados inatacáveis em poucas horas e o presidente sugere antecipadamente uma recontagem manual, vejo a que regressão civilizacional nos querem levar. E me convenço de que o complexo de vira-latas é uma patologia. Ou um embuste. Ou ambos.

Mas, como dizia minha avó, nascida na Calábria e que não levava desaforo para casa nem muito menos os aceitava dentro dela, “aqui se faz e aqui se paga”.

Tomara o primeiro turno seja o eco da angústia e da indignação a nos afligir a todos. E que o Brasil volte ao caminho produtivo. Não será fácil, temos muito entulho a remover. Mas, o primeiro sinal de racionalidade já surgiu com a aliança Lula-Alckimin, aliança que se expande com a chegada de outros partidos e outros políticos, convencidos de que o Brasil não nasceu para morrer na arrebentação da ignorância e da irracionalidade.

Os jovens vão votar, podes crer. Afinal, são mais prejudicados do que macróbios como eu, que já estou queimando óleo 80.

Vou até dar uma sugestão aqui para o Lula, a quem já peço desculpas pela irreverência. Nos primeiros meses, depois de sua vitória, Lula, convide a comunidade internacional para uma reunião de meio ambiente no Brasil. Quem sabe, em Manaus. Convide os chefes de Estado, eles virão certamente. E ali, Lula, assine decretos que restaurem a nossa respeitabilidade internacional na política de meio ambiente.
Ponha a boiada de volta no curral.

*Embaixador aposentado

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