ARTIGOS

O anjo bêbedo

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 12/12/2021 às 07:48

Alterado em 12/12/2021 às 07:50

“Anjo bêbedo”, de Akira Kurosawa, termina com o personagem principal, um médico de favela a enfrentar os milicianos da Yakuza com dignidade e sem temor, afirmando a uma jovem curada de tuberculose ter sido uma “vida racional” a razão de sua recuperação.

E o que será uma vida racional nos dias de hoje? Certamente, estamos muito longe dela. Na realidade, estamos mergulhados na mais profunda irracionalidade, escolhida por nós próprios em eleições livres. Esta semana foi particularmente irracional.

Talvez haja esperança de que nos livremos desta irracionalidade. Vejo dois sinais alvissareiros. O primeiro deles é que já não se acha a menor graça quando ouvimos frases de nossas autoridades sempre em contradição com o bom senso. Aliás, constato uma crescente irritação com a repetição de frases chulas ou de agressões gratuitas endereçadas à sociedade em geral por parte de nossos governantes ou seus aspones.

Não temos o direito de nos surpreender com a irracionalidade dominante, porque elegemos com confortável maioria quem nos alertava dever serem fuziladas umas trinta e cinco mil pessoas para o Brasil melhorar e que só com a posse de armas os cidadãos poderiam defender sua liberdade.

Eram frases tomadas como exageros de campanha eleitoral ainda que de péssimo teor. Já nos primeiros dias de governo, com as recomendações de que as cadeiras para a segurança de crianças em automóveis deveriam ser facultativas, vimos a enorme diferença de psicopatologia entre a nova ordem e as traquinagens do Dr. Jânio Quadros quando proibia brigas de galo ou desfiles de Miss Brasil com maiôs.

As irracionalidades se foram espraiando com intervenções despropositadas em temas como educação sexual, direitos humanos e até mesmo religião, de sensibilidade especial e que passaram a ser tratados a gritos de boiadeiros.

Na economia, um mágico de Oz surgiu a criticar todos seus colegas antepassados e a nos prometer uma nova aritmética em que todos ganhariam. Hoje, temos a inflação de volta, o congelamento do salários, o empobrecimento da classe média, o alto nível de endividamento das famílias. Claro, há um percentual muito pequeno que se enriquece com essa economia de guerra. E apoia a cantilena do mágico, embora dele debochando atrás do palco.

A par da grosseria geral, vicejam neste pântano duas outras flores. A primeira, é o cinismo da classe política, descompromissada com o bem-estar social, mas pronta a fazer qualquer arranjo que, em nome da assistência social, permita uma repartição secreta de fundos revestida de política social. A segunda, é a mais do que insana tentativa de fatiar a Constituição de 1988 com a maliciosa intenção de torná-la mais palatável à perpetuação de falcatruas.

Aos que se enganam com a falsa ilusão de que pelo menos não há corrupção no governo, bastaria recordar o que se viu na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Pandemia. O fato de que até hoje a Procuradoria Geral da República não tenha ultrapassado as chamadas fases preliminares bem demonstra o zelo com a causa pública.

A única unanimidade governamental é a crítica à "ingerência" do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal Eleitoral contra destemperos anticonstitucionais falados, urrados e escritos em praça pública ou fora dela.

A racionalidade indicaria que depois de tantos erros e desfeitas seria de esperar que houvesse um atitude mais sensata em quem pretende se apresentar para um novo mandato eleitoral em 2022. Esta semana mostrou a impossibilidade de se promover no Brasil um casamento entre a racionalidade e o governo, sequer mesmo uma união estável entre eles.

O espetáculo de isentar turistas de apresentar um atestado de vacinação, ordem que teria partido do mais alto escalão da República, apenas indica que a irracionalidade perdura e quer ser reeleita.

Até o mais ingênuo dos espectadores não pode deixar de estranhar tanta irracionalidade. Há nela mais do que ignorância, ideologia e a convicção de que a irrealidade é mais atraente do que os duros fatos impostos pela barreira da inteligência e da razão.

Nós, os tolos de sempre, estamos a ser puxados por um cabresto como ovelhas a tosar. Não é a primeira vez na história deste país em que a falsa moralidade funciona como abre-alas para a escola de samba da plutocracia.

A desordem e a confusão políticas em que estamos a viver são cobras criadas e treinadas para nos infundir o medo do desconhecido e aceitarmos o velho e falso autoritarismo.

Nesta noite de névoas e trevas, o erro maior será acreditar que o dragão adormeceu ou perdeu os dentes. Apenas a cada dia ele nos manda uma baforada de seu fogo maligno e se deleita com a grande possibilidade do sucesso de suas artimanhas em fazer do caos por ele plantado a plataforma de sua ascensão ao Mito que nunca foi.

E macacos me mordam se a primeira etapa desta estratégia autoritária não vier, como sempre, com a lenga-lenga de que com este Congresso ninguém pode governar. Triste e lamentável infortúnio o de nossos políticos não perceberem que embrulhados nos orçamentos secretos e nas emendas do relator estejam a engordar os abutres do autoritarismo.

E mais uma vez a luta pela Democracia no Brasil corre o risco de não deixar de ser o filme B de sempre, sem audiência nem aplausos. Apenas um filme sem caráter. Dirigido por um anjo alucinado.

*Embaixador aposentado

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