ARTIGOS

Terreno Minado

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 26/09/2021 às 09:28

Alterado em 26/09/2021 às 09:28

Perdemos tempo com a discussão sobre o direito ou não de uma comitiva presidencial comer pizza nas calçadas de Nova Iorque. Óbvio marketing político como tantos outros, como Obama a comer um hambúrguer num botequim de esquina em Washington. Até aí tudo bem tudo normal. O marketing vira um bumerangue contra os próprios marqueteiros quando o resultado do marketing é afrontar a legislação de uma grande cidade estrangeira e, desta forma, minar os esforços em favor da vacinação em massa contra a Peste do Covid.

Há estadistas que merecem reconhecimento por suas ações em proveito do bem-estar geral e até recebem chaves de cidades ou um título "honoris causa" de uma Universidade local.

O presidente brasileiro optou por incitar as autoridades sanitárias do aeroporto de Nova Iorque a olhar com mais cuidado os visitantes brasileiros. Se o presidente se permite burlar a lei municipal e até federal do país visitado, por que não seguiriam seus passos os cidadãos brasileiros? Se amanhã, caríssimo viajante, as autoridades alfandegárias do Kennedy Airport forem um pouco ou muito mais discriminatórios com você e sua indignada esposa, em comparação com o simpático casal da Noruega a seu lado, sorria; você está sendo filmado por vir do país da barra pesada. Tudo tem um preço; sobretudo a estupidez.

Mas, ao nos determos nestas comichões autoritárias deixamos de olhar com mais cuidado sobre o que se falou em nome do país na Assembleia-Geral das Nações Unidas num ano atípico como 2021 em que a humanidade pranteia a morte de milhões de cidadãos pela Peste, a sociedade americana amargura os vinte anos do maior ataque terrorista em seu solo, assim como a tentativa de golpe de Estado articulado por um presidente americano contra a Democracia. Sem esquecer as alterações climáticas que assustam por frequência e violência.

Os discursos dos chefes de Estado nas Nações Unidas, com maior ou menor ênfase, não poderão se furtar a esta agenda imposta pelos fatos à comunidade internacional. Expurgados de seus parágrafos endereçados à comunidade de seus próprios países, encontra-se neles o termômetro das aspirações internacionais no maior foro multilateral do planeta. Muito se critica a inoperância das Nações Unidas, como se a Organização pudesse atuar sem mandatos claros dos países que, como sabemos, estão muito longe de estarem unidos sobre temas econômicos e políticos.

Importa registrar o privilégio de o Brasil abrir o debate geral. Por razões mais de folclore do que históricas, esta primazia brasileira, embora sempre invejada, é até hoje respeitada como um direito costumeiro.

Somos o primeiro orador a falar, imediatamente antes dos Estados Unidos da América, país-sede da Organização. Na prática isto facilita a um estadista brasileiro usar a Assembleia-Geral para influenciar os rumos das deliberações e dos trabalhos das Nações Unidas, desde que saiba acolher igualmente as óbvias ressonâncias internacionais. Somos obrigatoriamente ouvidos por um plenário absolutamente lotado e nossa voz é transmitida parcial ou integralmente por televisões mundo afora. Não é pouca coisa. Discurso na ONU sempre exigiu atenção cuidadosa do Itamaraty, responsável por sua redação em coordenação com os demais ministérios. Não é conversa fiada no cercadinho.

O discurso do presidente brasileiro este ano foi sem dúvida melhor do que o primeiro e mereceu análise aprofundada da imprensa brasileira, com cujas linhas em geral concordo. Atrevo-me, porém, a aduzir me parecer uma reação simplista apenas sublinhar ter sido o discurso uma coleção de "fake news" ou de alegações mentirosas e seguir em frente. Virar a página.

Há no discurso brasileiro uma afinidade de idéias com os pronunciamentos de Donald Trump. Quando se comparam a linguagem e a substância do discurso de Biden com o de Bolsonaro torna-se meridianamente claro que no discurso brasileiro o mundo não mudou. Em outras palavras, o discurso é mais evidentemente velho quanto mais nele se encontram reafirmações de uma política condenada pela comunidade internacional. Os exemplos abundam na defesa de uma política ambiental inexistente, na proteção a terras indígenas hoje colocadas em questão, no negacionismo extravagante de nossa política de saúde e até mesmo na ilusória capacidade brasileira de atração de capitais estrangeiros quando a insegurança jurídica hoje é maior até mesmo na decantada inexistência de corrupção.

Biden, obviamente, terá percebido a linha de afinidade entre Bolsonaro e Trump, hoje o grande engenheiro do caos americano, convencido da farsa eleitoral das últimas eleições e ansiando por uma revanche em 2024. E este contraste em muito dificultará nossas relações com os Estados Unidos, em especial na área de meio-ambiente.

Não compreender que os Estados Unidos da América estão atravessando uma fase delicada após vinte anos de fracassos militares no Iraque e no Afeganistão, além de internamente divididos pelos fantasmas do racismo e da supremacia branca, é ignorar o peso de um elefante ferido.

Constato serem infrutíferos os esforços do Itamaraty, até mesmo no português, língua cada vez mais primitiva. O discurso não atinge o mínimo aceitável , nas bancas do Instituto Rio-Branco, para retratar a realidade de nossa sociedade mais complexa e diversificada do que a traduzida em frases soltas, sem consequência, antecedente ou aprofundamento. Que falta faz Othon Moacir Garcia.

Não me animei a escrever sobre o discurso do presidente por saudosismo profissional. Nada disto. Escrevo porque me condói ver como o nível intelectual no trato da coisa pública vem-se abastardando a ponto de insinuar-se em nossas mentes uma tolerância indevida com o solapamento da Democracia, da educação de nosso povo e da grandeza da nação. Estamos a empobrecer aceleradamente. E sequer podemos culpar outros a não ser nós mesmos com escolhas que já se mostraram fatais nos regimes autoritários do século XX.

O inquérito parlamentar no Congresso americano sobre a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro se iniciou com a intimação dos suspeitos usuais, dentre eles, nosso conhecido Steve Bannon. Estamos jogando com uma turminha pesada. Steve Bannon é o arquiteto das campanhas eleitorais da extrema direita americana e idealizador de um movimento internacional de mesma coloração política a que parte de nossa cúpula governamental aderiu, sem que o tema sequer tenha merecido adequada discussão pela sociedade brasileira. Estamos entrando num clube de supremacistas brancos.
Ou muito me engano ou nossa tolerância com essa política de autoritarismo supostamente democrático poderá nos levar a impasses insuperáveis e estimulará a reentrada da violência como árbitro da liberdade política.

*Embaixador aposentado

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