ARTIGOS

Pandemia e autoritarismo

Por ADHEMAR BAHADIAN, [email protected]
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Publicado em 11/07/2021 às 08:34

Alterado em 11/07/2021 às 08:34

Ivan Krastev, cientista político renomado, analisa em seu pequeno livro sobre o pós-pandemia ( Is it tomorrow yet?) as relações entre governantes e governados após previsíveis conflitos entre liberdade individual , democracia e autoritarismo. A pandemia certamente teria impactos na opção eleitoral dos cidadãos, constrangidos por medidas de combate ao vírus, percebidas como atentatórias à liberdade de ir e vir, do lockdown, do uso de máscaras e distanciamento social.

Uma frase do livro me chamou especialmente a atenção ao perguntar o que mais caracterizaria um governante autoritário; o líder contrário às medidas constrangedoras de liberdade em benefício da saúde pública ( distanciamento social, uso de máscaras) ou o defensor da liberdade imprevidente, refratário àquelas medidas e a favor da manutenção das rotinas do cotidiano? O leitor certamente se recordará de que no Brasil o dilema foi objeto de claríssima opção pelo governante brasileiro, aparentemente seguindo os passos de Donald Trump.

Após mais de quinhentas mil mortes pelo coronavirus no Brasil, o tema deixa o terreno das especulações e se transforma em questão de apuração de responsabilidades. Nos Estados Unidos da América, embora o número de mortos, tanto em valores absolutos como relativos, ainda seja superior ao do Brasil, Donald Trump, apesar de ter menosprezado as medidas de distanciamento social, defendeu e facilitou a rápida e extensiva vacinação popular. No Brasil, Bolsonaro atuou como se sabe e ainda estamos longe de chegarmos à imunização de metade da população, mas é evidente a redução gradativa de número de mortos e a diminuição de infectados principalmente de idosos, já vacinados com as duas doses prescritas.

A apuração de responsabilidades pelo atraso na imunização do povo brasileiro ainda não se completou e recentemente começa a se desvendar que, a par da inércia funcional supostamente na raiz do atraso, existiriam possíveis e múltiplas manobras de desvio de dinheiro público em esquemas de corrupção jamais pressentidos anteriormente.

Não tenho conhecimento de que idêntica desonestidade tenha ocorrido em qualquer outro país do planeta e caso se confirmem as suspeitas, cada vez mais substanciais e infelizmente mais óbvias, corremos o risco como povo e nação de perdermos o pouco que ainda nos resta de respeito na comunidade internacional. Confirmada - e sobretudo não punida - a eventual manobra hedionda, o Brasil efetivamente entrará no rol dos poucos países-párias do planeta. E isto será uma injustiça com os sentimentos de solidariedade, espiritualidade e civilidade de nosso povo. Sem exagero, portanto, estamos diante de um crime de lesa-pátria em sua forma mais absurda, a de assassinato do caráter de um povo.

Já conhecemos na historia de nosso país inúmeros casos de corrupção e não somos em nada diferentes de outras nações e povos que se viram manchados pelo assalto ao Erário. Mas, no caso em tela, se houve deliberado atraso na compra de vacinas não se poderá esquecer que este delito em muito ultrapassa a subtração de bens e vampiriza a morte prematura de milhares de brasileiros. Este é um fato quantificável e já vem sendo quantificado.

Estamos todos, de uma forma ou de outra, enlutados por este crime. Se considerarmos que cada brasileiro morto pela peste, tivesse pelo menos 10 parentes entre pais, filhos, cônjuges além de amigos, cerca de 500.000 mortos se transformam em 5.000.000 ( cinco milhões) de pesares e saudades, de órfãos e de viúvas ou viúvos. E a contagem ainda não terminou. Muitas guerras não levariam tantos. Nenhuma guerra nos levou a tanto.

Compreende-se que tal horror não seja assimilável e repudia ao mais insensível coração animal, quanto mais ao humano, animal racional. Compreendo que corporações zelosas de sua imagem queiram de imediato deslindar-se de possível culpabilidade de seus membros. Compreende-se, mas não se justifica, em nome deste zelo profissional, obstar ou constranger a imperiosa e inadiável obrigatoriedade diante da sociedade e de corporações irmãs mundo afora o dever de apuração de responsabilidades, garantidos os direitos de defesa a cada cidadão inculpado. Só desta forma poderemos voltar a nos olhar nos olhos como irmãos, honrar nossos compromissos passados com a anistia e não os confundir com indulgência pretendida ou assumida em leitura enviesada da Constituição .

A pandemia, a nos fazer purgar tanta dor, nos impõe uma reflexão definitiva sobre o papel de cada um de nós nesta vida e sobre o sentido da humanidade nesta terra, talvez não tão imorredoura quanto sempre a julgamos. Só uma solidariedade universal de adultos poderá nos fazer dominar com menos dor outras pragas, pestes e desequilíbrios ecológicos que certamente virão.

A sociedade brasileira está diante de sua maior encruzilhada neste século XXI . Estamos cansados de milagres e milagreiros. Nos aproximamos a passos largos dos 200 anos de nossa Independência política. Não é hora de retrocessos amparados por velhas cantilenas de que regimes comunistas estão prestes a sufocar nossa democracia e, a pretexto de combater o totalitarismo, nos intoxicar com autoritarismo.

Nossa maior tarefa é aprofundar a democracia com a vigorosa implementação dos direitos e deveres inscritos em nossa Constituição, dentre os quais avultam os direitos humanos e o direito ao desenvolvimento. E esta tarefa só será possível com a manifestação soberana e cívica de nosso povo através de mecanismos livres, auditáveis como os de que hoje dispomos para indicar nossos representantes e para pagar nossos impostos. E como estes não pagamos com moedas falsas, assim também não elegemos representantes para serem falsos moedeiros.

E nenhum homem, nenhuma cidadã deste país é desprovido de memória, própria ou contada, vacina única contra vírus totalitários.

* Escritor, embaixador aposentado

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