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Blocos desfilam em 2018 pelo direito à rua e contra a intolerância

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O Carnaval é um espaço de crítica e sátira política em si, mas o de 2018 parece um ponto fora da curva na história de importantes integrantes da cena carioca, de blocos de rua a escolas de samba. O bloco de rua “Simpatia é quase amor”, que não costuma fazer desfiles com tom político, preparou uma camisa protesto contra o prefeito do Rio Marcelo Crivella. O também tradicional bloco de rua Carmelitas nunca teve enredo, mas para este ano resolveu que era importante se manifestar, e chega para cobrar uma resposta contra a intolerância não apenas por parte do Estado, mas sobretudo da sociedade, em geral. 

Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Uerj na graduação e na pós-graduação, coordenador do Centro de Referência do Carnaval e autor de diversos livros sobre o tema, frisa que realmente o carnaval sempre teve seu lado crítico, não é nenhuma novidade todo o conteúdo político que veremos em 2018. Estamos em um ano, contudo, “que marca um momento importante desta questão da crítica política no Carnaval”.

João Gustavo Melo, também pesquisador do Carnaval e jornalista, resume: “O Carnaval de 2018 está se construindo como uma forte reação a um quadro de intolerância religiosa, desarranjo político e crise de representatividade. Ingredientes perfeitos para serem exorcizados nas ruas e avenidas nos dias de folia”.

O Jornal do Brasil conversou com representantes de escolas de samba, de blocos de rua já tradicionais e com especialistas no assunto para montar um retrato do que está por vir. No Rio, o personagem mais falado talvez seja o prefeito Marcelo Crivella. Entretanto, nada do registrado nos últimos meses no país escapa da resposta do Carnaval. Tem crítica às relações entre Legislativo, Executivo e Judiciário, à intolerância religiosa e de gênero e a toda e qualquer tentativa de podar a liberdade de cada um.

A tal letargia brasileira que tem sido apontada em debates talvez saia de cena definitivamente em fevereiro. O Carnaval chega, frisam os entrevistados, para afirmar que a sociedade está atenta e que vai resistir ao que considera retrocesso. É festa, é brincadeira, mas é isto principalmente pelo direito à liberdade de brincar, de acordo com diferentes crenças e direções, como resumiu o presidente do Carmelitas, Alvanísio Damasceno.

Crônicas do cotidiano dos blocos de rua

Rita Fernandes, presidente da Sebastiana (Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da Cidade), destacou em conversa por telefone que, “com certeza”, as críticas dos blocos para este ano estão “mais acentuadas”. “Não só pela questão do país em si, complexa, complicada, mais especificamente pelas crises do Estado e pela Prefeitura do Rio, que está com um prefeito bem conservador, vindo de uma igreja bastante conservadora. A cultura de rua é tudo que eles não têm incentivado. Com certeza, os blocos e o carnaval de rua deste ano estarão dez tons acima na crítica e na ironia, na brincadeira, nas fantasias, nos enredos e na manifestação de cada folião.”

A mensagem do Bloco do Barbas com o enredo “Se é pecado sambar, o Barbas não pede perdão” é clara, diz o presidente Nei Barbosa, uma resposta à tentativa de corte de verbas do Carnaval. “A gente se coloca junto com as escolas todas, criticando essa falta de apoio ao carnaval de rua, às escolas de samba. De um ano para o outro, a situação do Carnaval mudou completamente, desde que assumiu o novo prefeito.”

Barbosa ressalta que o bloco sempre fez crítica política, social desde quando surgiu, no final da ditadura, logo no início da abertura do regime. “Todos os enredos do bloco são críticas sociais, políticas, têm este papel”.

O bloco, inclusive, vai levar sua crítica também ao Sambódromo. “Nós vamos sair na Mangueira, representando o carnaval de rua do Rio”, conta o presidente do Barbas (Confira detalhes sobre o enredo da escola em O desfile dos descontentes chega ao Sambódromo)

Se a mensagem do Barbas é direta ao cenário político da capital fluminense, a do tradicional Carmelitas, que nunca teve enredo, é ao Estado e à sociedade. Alvanísio Damasceno, presidente do Carmelitas, jornalista que trabalha também com edição de livros, explica o enredo "Contra a intolerância e contra censura, a favor da liberdade de expressão".

“A gente sempre teve tradição de não ter enredo, deixar a coisa livre, esperando que as pessoas se manifestassem sobre os nossos problemas. Mas aí começou a ter centro espírita incendiado, terreiro incendiado, exposição fechada no Rio Grande do Sul. A gente pensou, 'caraca, isso é muito grave!' A gente chamou o [artista] Carlos Vergara, autor da camiseta, que criou uma tradição nos anos 1960 e 1970 de resistência à ditadura militar, e ele disse, ‘to dentro’”, destaca Damasceno.

A mensagem, então, é contra a intolerância, em geral. “Não pode fechar exposição, não pode queimar centro espírita, não pode quebrar santa, não pode jogar pedra na criança porque tem turbante de candomblé. Tudo isso está rolando na sociedade. É mole falar que é porque o Crivella ganhou que está tudo um merda - ele não merece essa confiança, é um Estado religioso que está tirando dinheiro de manifestações de matriz africana, mas para nós o mais importante não é o Estado assumir uma resposta, é a sociedade criar condições para que a liberdade seja exercida o ano todo, não só no Carnaval.”

Mais grave para o Carmelitas, diz Damasceno, é um grupo de pessoas conseguir fechar a exposição QueerMuseu a partir das redes sociais. “É um obscurantismo não só do Estado, mas da sociedade. A gente nunca fez enredo [e agora estamos fazendo]. Não é só [contra] o Crivella, é contra todo este movimento que está crescendo na sociedade, que cria condições para que uma exposição seja fechada, uma criança seja apedrejada, sem falar nos gays mortos no dia a dia.

A camisa do Carmelitas desenhada por Carlos Vergara tem figuras como Einstein, uma mulher árabe, o pastor evangélico RR Soares, “todo mundo junto, porque todos são iguais e todos merecem respeito. “Nosso carnaval é mais do que brincar. Vamos brincar, sim, mas pela liberdade, pela necessidade de não se meter na vida dos outros, de deixar o cara fazer a exposição, curtir o candomblé. Simples assim."

O bloco Suvaco do Cristo preparou o enredo “Proibido Proibir”, em uma crítica a toda intolerância registrada no país nos últimos meses. “Vimos com perplexidade o retrocesso político e social que atualmente assola o Brasil. As tentativas de retorno às trevas da idade média com o retorno da censura nas artes e na educação, da negação do estado laico, da exacerbada intolerância com ataques aos diferentes fizeram com que reforçássemos o discurso libertário dos modernistas, vanguardistas e mais recentemente tropicalistas de que É proibido proibir”, diz o presidente do bloco João Aveleira.

Outro enredo certo para este ano é o “Vossa Excelência, Que Merda é essa?”, do bloco carioca “Que merda é essa?”. O desenho feito para a camiseta, com um juiz acompanhado de sacos de dinheiro, parece mandar um recado apenas ao Judiciário. A crítica do bloco, contudo, é direcionada a todos os poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário.

“Tem sido uma decepção tremenda ultimamente. É o Legislativo se metendo no Judiciário, soltando o [presidente da Alerj, Jorge] Picciani; é o STF dando liberdade para o Legislativo liberar um Aécio [Neves]. É a escolha da nossa nova ministra do Trabalho [a filha de Roberto Jefferson, Cristiane Brasil]. Você pensa, ‘que merda é essa?’”, explica o presidente do bloco, Floriano Torres.

A inspiração para o nome do enredo é a forma recorrente de tratamentos dos deputados, por exemplo, entre si – “Vossa Excelência”. “Passou a ser um termo geral, não se refere só a juiz”, explica. A ideia do enredo é esta, mas o samba ainda está em aberto. “Nós vamos escolher o samba muito perto do carnaval, para que fique mais atual ainda, para que seja fresco. Nas próximas, vai surgir muito mais.”

Uma preocupação, por ora, é ser apartidário. “Tem gente que vai olhar a imagem do juiz e pensar no Sérgio Moro, ou no Gilmar, a interpretação está aberta para isto mesmo.”

Floriano Torres aproveita para ressaltar a importância da presença em si dos blocos na rua neste ano. “Nenhum poder público consegue barrar a vontade do carioca de ocupar a rua. Não é lei, não é dinheiro, a rua é nossa! Pode ter dinheiro, pode não ter, mas os blocos não vão deixar de ir pra rua. Nossa liberdade é eterna, não tem político, não tem prefeito que vai tirar nossa alegria de pular carnaval da ‘nação quimerdense’”, finaliza o presidente do bloco, lembrando que há outros pelo país com o mesmo nome, como o de Cabo Frio.

Já o bloco Simpatia É Quase Amor já tem sua crítica para 2018 em forma de camiseta. Dodo Brandão, cineasta, diretor do Simpatia, lembra que o bloco nunca tinha desfilado carnaval com um tema definido, e agora lança camiseta com desenho dos cartunistas Aroeira e Chico Caruso. “É uma crítica ao Prefeito Marcello Crivela pelos cortes nas verbas. A ideia deste ano é fazer uma crítica à política que o prefeito estipulou pro Rio, contra as manifestações culturais”, comenta o cineasta.

O Simpatia, apesar de ter vindo de um movimento político, nunca desfilou com temas políticos. Sempre cantava a bossa nova, a beleza da orla, entre outros temas praieiros. Para este ano, ressalta o cineasta, a necessidade de se manifestar falou mais alto. “A gente achou que não deveria ficar calado diante do descaso de dar as costas para as manifestações culturais, é uma crítica ao prefeito do Rio.”

Além da camiseta, a diretoria deve sugerir aos compositores que entrem “nessa pegada” crítica, “pelo carinho e preocupação com as manifestações tradicionais da cidade”. “O Brasil está meio estranho, mas, com certeza, a crise nacional passa por aqui, e o Crivella aproveita a crise para dar as costas por uma questão religiosa mesmo, isso está claro, não tem a menor dúvida”, diz o cineasta.

O professor Felipe Ferreira explica que o crescimento dos blocos a partir dos anos 2000 é um processo político em si, assim como a própria existência desses blocos que reúnem grupos identitários com características e estéticas próprias. Tal movimento é muito derivado, diz Ferreira, de todo o movimento alimentado pela internet, pelas redes sociais, interações que incrementaram a linguagem e presença dos blocos. “Eles são tradicionais, antigos, mas crescem muito a partir do começo dos anos 2000.”

“Nessas reações que os blocos têm agora há uma questão política muito direta, é uma reação, como sempre fizeram, a uma realidade. A realidade deste momento é que a questão política está muito presente. As tendências políticas, as manifestações políticas estão muito presentes na internet, na imprensa, nas conversas. E os blocos refletem isto.”

Uma das características dos blocos, a marchinha, “sempre foi uma espécie de crônica do cotidiano”, frisa o professor. “O caminho normal do bloco é falar da sua contemporaneidade, e a contemporaneidade nesse momento é extremamente política.”

Confira as outras matérias da série:

>> O desfile dos descontentes chega ao Sambódromo

>> Máscaras do Bolsonaro, Crivella e Kim Jong-un são apostas para Carnaval 2018