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Entrevista | Pedro Simon: senador, franciscano e combatente

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Mauro Santayana, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - Não são todos os parlamentares, mas alguns deles fazem dos gabinetes pessoais uma espécie de santuário de seus valores. O costureiro Clodovil transformou o seu em luxuoso estúdio de televisão meio a que devia a sua popularidade. O do senador Darcy Ribeiro, além de adornos que lembravam seu trabalho como antropólogo, ostentava, na parede, belo desenho de Oscar Niemeyer, seu amigo e companheiro de ideias. O do senador Pedro Jorge Simon está cheio de imagens, sendo a maioria delas de São Francisco de Assis. Embora tenha feito voto de pobreza, e se tornado membro da Ordem Terceira de São Francisco a que também pertenceu Tancredo Neves Pedro tem o seu lado combatente.

Ele é franciscano mas, de alguma forma, dominicano, na defesa dos valores que considera inalienáveis a um cristão. Lembro-me de outro católico, mestre nas capoeiras da inteligência, com seus aparentes paradoxos, que foi Chesterton. Ele começa a biografia do santo de Assis dizendo que il poverello e São Domingos de Gusmão que foram contemporâneos e se fizeram amigos eram o verso e o anverso da mesma realidade humana: São Francisco era o vale, e São Domingos, a montanha; mas que é o vale, senão a montanha ao contrário?

O gaúcho Pedro Simon nasceu perto de Porto Alegre, em Caxias do Sul, na encosta da Serra Gaúcha e entre os vales do Caí e Taquari-Antas. Em uma zona em que predominam os imigrantes italianos e alemães, Pedro é filho de comerciantes libaneses.

Descobrerta

Eu era um guri, quando me interessei pela política. Ao ingressar na Faculdade de Direito, já era dirigente da União Estadual dos Estudantes do Rio Grande. Depois, me tornei presidente do Diretório Acadêmico e, no início do governo de Juscelino, em 1956, assumi interinamente a presidência da UNE, em processo de intervenção na entidade. Já conhecia o grande homem público e de fé cristã, que foi Alberto Pasqualini.

Ao evocar aquela forte personalidade, conversamos sobre a geração dos que, nascidos com o século 20, tinham, de um lado e do outro da ideologia e da práxis política, a mesma noção da vida pública. Foram homens que, na insistência da ética na condução do Estado, reduziram o poder das oligarquias, embora não as vencessem. Eles foram os guardiões do espírito republicano, quando, confrontando-se aos sectarismos dos anos 20 e 30, o regime se viu ameaçado e, com ele, a integridade territorial do Brasil.

Aluno de Pasqualini, junto com outros rapazes de minha geração, encontrava-me com o mestre três vezes por semana, quando conversávamos até a madrugada. Ele era quase 30 anos mais velho do que nós, e, embora estivesse ainda nos seus 50, nós o víamos como uma figura venerável. Não lhe nego uma verdade: Pasqualini me fez completa lavagem cerebral durante aqueles poucos anos. Decidi segui-lo em tudo, do Evangelho de Cristo, como ele nos explicava, em linguagem simples, ao catecismo democrático. Com ele aprendi a não confiar nos rótulos, a examinar sempre os conteúdos doutrinários. Já naquele tempo, Pasqualini, orientado pelo pensamento social da Igreja o pensamento de Leão XIII, e não o de Pio X encontrara uma terceira via, entre o socialismo de inspiração marxista, e o capitalismo liberal. Ele a denominava solidarismo. Com Pasqualini descobri a mensagem da Rerum Novarum que, por uma dessas coincidências históricas, foi divulgada em maio de 1891, quando se reunia o Congresso Constituinte Republicano no Brasil.

Eterno seguidor das ideias de Pasqualini

Pedro foi vereador em Caxias e deputado estadual, pelo PTB de Vargas e de Pasqualini. Os trabalhistas gaúchos oscilavam entre a liderança prudente e doutrinária de Pasqualini e a impetuosidade gauchesca de Brizola. O jovem católico ficou sempre sob a chefia de Pasqualini.

Não tive outro líder e ainda continuo sob sua orientação ética e política. Inquieta a minha fé a morte prematura de Pasqualini. Aos 55 anos foi golpeado por um derrame, que o paralisou, até a morte, três meses antes de chegar aos 59 anos. O Brasil não poderia perdê-lo. Ele foi obrigado a licenciar-se de sua cadeira no Senado.

Revolução de 30

Voltamos a conversar sobre a geração de Pasqualini, que participou ativamente da Revolução de 30, no comando de um contingente que lutou em Porto Alegre. A conversa se concentrou então na maior personalidade da história republicana, Getúlio Vargas. Pedro Simon acha que Vargas e Pedro II foram os maiores homens de Estado do Brasil. Como o entrevistador deve ser também provocador, aceito Getulio, mas faço restrições à monarquia. Pedro vê no Segundo Reinado e em seu soberano a garantia da integridade do território nacional, ameaçada pelas rebeliões regionais, entre elas, a dos Farrapos. O imperador soubera pacificar as províncias, orientando, nesse sentido, o Duque de Caxias, para que não se excedesse na repressão, e na concessão rápida da anistia aos revoltosos.

Comentamos a intensidade fulgurante do fenômeno Vargas. Entre a sua eleição para deputado federal, em 1923, e a morte, em agosto de 1954, transcorreram-se apenas 31 anos. Assustou-nos a relatividade do tempo. Há 31 anos, estávamos em 1979, em pleno governo do general Figueiredo e na luta final pela anistia. Getulio que conforme Pedro se recorda de ter ouvido o juízo de Tancredo Neves foi o tipo perfeito do político mineiro, na sua prudência e em sua perseverança. Em 31 anos, foi um dos discretos articuladores da pacificação do Rio Grande do Sul, com o Acordo entre chimangos e maragatos em Pedras Altas, em 1923; ministro da Fazenda de Washington Luis, em 1926, sucedeu a Borges de Medeiros na presidência do Estado em 28; criador, com os mineiros, da Aliança Liberal, candidato derrotado pela fraude eleitoral a presidente da República, em 30, líder da Revolução de Outubro e chefe de Estado durante mais de 17 anos: duas vezes discricionariamente no governo provisório e no Estado Novo e duas vezes constitucionalmente, entre 1934 e 1937, e entre 1951 e seu suicídio.

Getulio Vargas evitou uma tragédia histórica no Brasil

Pedro concorda com a tese de que Getulio, com o golpe de 1937, tenha tido ou não esse propósito, evitou o que seria uma tragédia para o Brasil e um tropeço na luta contra o Eixo: a vitória de Plínio Salgado nas eleições marcadas para 1938. Os integralistas dominavam a opinião nacional. Controlavam a maioria das Forças Armadas, doutrinadas contra a esquerda e mobilizadas a partir da frustrada Intentona de 1935; eram senhores da hierarquia católica, arregimentada contra o fantasma do comunismo, e empolgavam eminentes intelectuais, como Alceu Amoroso Lima e Gustavo Barroso, entre outros.

Nenhum partido político brasileiro teve presença tão capilar no território nacional, nem contou com sua férrea disciplina. Onde houvesse uma igreja ou um quartel, Plínio era imbatível. Naquelas circunstâncias, as duas candidaturas republicanas, de Armando de Salles Oliveira, da oposição, e de José Américo, da situação, não teriam condições de vencer o pleito. Como não havia segundo turno, quem tivesse a maioria relativa seria vitorioso e essa maioria relativa seria de Plínio Salgado. A vitória de Plínio, subvencionado pelos nazistas alemães e fascistas italianos, de que era confesso vassalo, impediria a nossa participação na guerra com os aliados e a criação da base de Natal, decisiva para a conquista da África e da Itália.

Pregação

Pasqualini não tinha a vitória eleitoral como meta, mas a campanha como oportunidade de pregação. Creio que ele se tenha sentido aliviado ao ser derrotado duas vezes como candidato ao governo do Rio Grande do Sul; em 1947, pelo avô de Nelson Jobim, Walter Jobim, do PSD e, em 1954, por Ildo Meneghetti, também do PSD. O PSD do Rio Grande do Sul conseguia ser mais conservador do que a UDN.

Volto a provocar Simon: se tivesse nascido uma geração antes, seria chimango ou maragato? Ele diz que foi admirador de Júlio de Castilhos, que morreu aos 43 anos e governou com autoridade incontestável o Rio Grande do Sul, a partir dos 31 anos. Não tem a mesma admiração pelo seu sucessor, Borges de Medeiros, que governou o Estado por mais de vinte anos, mas não tinha o lastro intelectual do grande positivista.

Contra o maniqueísmo da política do Rio Grande

Tenho lutado por superar esse maniqueísmo da política gaúcha, que deveria ter sido sepultado no Acordo de Pedras Altas. Tenho, ao lado do culto a Castilhos, profunda admiração pelos maragatos Gaspar da Silveira Martins e Assis Brasil, com seus ideais de liberdade, de democracia. Sendo assim, creio que temos que agir com os trabalhistas e sob a influência de Pasqualini, a fim de superar esse confronto ocioso entre duas formas de ver a política, que nos levou aos vários confrontos armados, e se transferiu para o futebol. A governadora Yeda Crusius insiste no radicalismo sem sentido entre PT e PSDB. Nós, com José Fogaça, não participamos desse simulacro de Gre-Nal. Corremos por fora, pela pacificação de nosso estado, pela defesa dos interesses permanentes e atuais do povo gaúcho. O PMDB do Rio Grande do Sul não entra nesse jogo menor. É hora de esquecer chimangos e maragatos.

Foi assim, lembra Pedro, que ele, como líder da oposição, se uniu ao governador Sinval Guazelli, para reivindicar do presidente Geisel a instalação do pólo petroquímico do Rio Grande. Guazelli, depois de breves palavras, disse a Geisel que o Rio Grande estava unido, ali, naquela postulação, e tanto era assim que caberia ao chefe da oposição defender a causa junto ao Presidente. Ao falar, Simon foi aparteado pelo ministro Delfim Netto com o argumento de que o Estado não dispunha de petróleo, nem de minerais para se tornar centro industrial. Simon respondeu que se Delfim tivesse nascido no Japão e ali conduzido a política econômica, aquele país, um conjunto de ilhas vulcânicas, não se transformaria na potência industrial que era, e continua sendo. Geisel, também gaúcho, decidiu em favor de seu estado.

Estou desolado. A política virou negócio

Ao falar em Tancredo, Simon evocou a antiga aliança entre mineiros e gaúchos. Lembrou a solidariedade política e pessoal do mineiro para com Getúlio e a marcante atuação de Itamar, como presidente da República.

Tancredo disse Pedro poderia ter sido um político gaúcho, com suas ideias, seu comportamento ético, seu patriotismo, seu nacionalismo. Não posso deixar de lembrar, aqui, como ele foi contestado pelos então radicais do PT. O PT não só lhe negou os votos no Colégio Eleitoral, como se absteve de assinar a Constituição de 1988. Como o tempo é árbitro implacável, vemos hoje o PT, no governo, tomar medidas conservadoras que provavelmente Tancredo não tomaria, principalmente no bom convívio com os banqueiros.

Simon conhece todas as circunstâncias indesejáveis da política, mas não entendeu como Itamar se deixou levar pela lábia de Fernando Henrique Cardoso, em tudo por tudo o contrário do mineiro.

Veja você, que conhece também o que foi o governo de Itamar. Quando decidiram pelo afastamento temporário de Collor, o secretário do Senado foi convocar o vice-presidente para que assumisse logo. Se bem me lembro, era uma quinta-feira. Itamar solicitou que a assunção formal do cargo se desse na segunda-feira. Como era vice-presidente, já se considerava no cargo, mas não queria cumprir o ritual solene da posse. Darci Ribeiro, que estava presente, teve uma crise de risos. Em 1964, quando Auro de Moura Andrade resolveu declarar vaga a Presidência, foi advertido de que Jango se encontrava no território nacional, na sede do comando do III Exército, e que estaria de volta a Brasília em três horas, no máximo. Não lhe deram nem mesmo meia-hora. Itamar conseguiu três dias.

Simon relembra os feitos de Itamar. O PT lhe pediu que resolvesse o problema da fome. Ele convocou dois radicais, dom Mauro Morelli e Betinho, que o criticava abertamente, para a Comissão de Segurança Alimentar e mandou que o Banco do Brasil desse todo apoio ao movimento. Assim, essa iniciativa, que é hoje o ponto maior de prestígio do governo Lula, começou com Itamar. Fernando Henrique desnaturou o programa, criando a tal Comunidade Solidária, e a entregou à direção da própria mulher. Itamar, com Jamil Haddad, criou os genéricos e iniciou a implantação do SUS. Para combater a corrupção, entranhada no governo pelo grupo de Collor, criou a Comissão de Investigação da Administração Pública, dela encarregando homens da mais alta reputação no Brasil, como Cândido Mendes e Modesto Carvalhosa. O primeiro ato de Fernando Henrique foi dissolver a comissão.

Quando eu protestei, ele me disse que assinara o ato sem ler o que é inadmissível em um presidente da República. Mas não a reconstruiu. Em seu lugar criou um órgão de faz de conta e nomeou, para dirigi-lo, uma senhora que podia ter todas as virtudes, menos a disposição de investigar qualquer coisa. Itamar, em seus poucos meses, fez um governo em sintonia com o Congresso, mas não se curvou ao fisiologismo. E foi implacável na defesa da moralidade do poder. Desafio a qualquer um apontar um só deslize do governo durante aqueles meses, que não tenha sido punido pelo presidente. Foi assim que, quando houve rumores contra seu Ministro da Casa Civil, Henrique Hargreaves, não titubeou em afastá-lo, a fim de esclarecer as suspeitas, que, como se comprovou, eram infundadas.

Pedro Simon, 80 anos, continuará senador por mais quatro anos. Menos pela idade, porque, com sua vitalidade, ganha de seus auxiliares muito mais jovens na capacidade de trabalho, ele se prepara para a retirada, em 2014.

Exceções

Estou desolado. A política se transformou em um negócio. Embora ainda haja homens honrados no Parlamento e no Executivo, eles se tornam cada vez mais raros no Brasil. Não me considero ético; considero-me um homem como os outros que amam seu país e procuram cumprir, com dignidade, os seus deveres como pais de família e cidadãos. Tive a oportunidade de servir ao Rio Grande e ao Brasil, durante mais de 50 anos, na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, como governador de meu estado e, nos últimos 32 anos, no Senado. Não fui outra coisa em minha vida, senão servidor público, sempre com mandato direto do povo gaúcho.

E, ao despedir-se:

Meu exemplo de homem santo é Francisco de Assis, que historiadores do mundo inteiro consideraram a maior personalidade do segundo milênio. O primeiro milênio de nossa era começou com Cristo. E não sabemos se teremos, neste milênio, quem deles possa aproximar-se. Meu exemplo de brasileiro continua sendo Alberto Pasqualini, não obstante a admiração por outros, como Getúlio, Tancredo, Itamar, Teotônio Vilela, Ulysses. Com todo o sofrimento por que passam os homens empenhados no cumprimento de seus deveres, sinto-me feliz. Pude servir aos outros, e quem serve a seu povo é sempre um privilegiado.