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Golpe 64: personagens contam detalhes da mais longa ditadura do Brasil

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Yacy Nunes, JB Online

RIO - Na madrugada do dia 31 de março de 1964, exatos 45 anos atrás, tropas militares sob o comando do General Olímpio Mourão Filho deixavam Juiz de Fora (MG), sede da IV Região Militar, em direção ao Rio de Janeiro. O objetivo era derrubar o governo do presidente João Goulart após período marcado pela instabilidade política e intensas pressões das crescentes aspirações populares e do sindicalismo urbano e rural organizado, de um lado, e do empresariado, setores da classe média e do comando da Igreja Católica, além dos próprios militares, de outro.

Temendo uma guerra civil sangrenta, Jango não ofereceu resistência. Procurou abrigo no Rio Grande do Sul, onde o aliado Leonel Brizola lhe esperava, mas logo seguiu para o exílio no Uruguai. No dia 1º de abril de 1964, o então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarava vaga a presidência da República e, no dia seguinte, era organizado o Comando Supremo da Revolução .

Chegava ao fim o pacto populista que havia sustentado a frágil democracia brasileira nos anos anteriores. O país assistia ao nascimento de uma ditadura militar que perduraria 21 anos e, em nome da ordem e do combate ao comunismo, abria as portas da repressão política e do cerceamento a liberdades individuais e coletivas.

Figuras que vivenciaram de perto estes momentos decisivos da história brasileira, entrevistados do documentário Os Herdeiros de Vargas, compartilham nesta edição do JB as impressões e leituras que fizeram daqueles eventos que reconfigurariam a trajetória política brasileira e contam como foram afetados, individualmente, em seu cotidiano como cidadãos, profissionais ou ativistas, pelo golpe de Estado concretizado naqueles dias.

Testemunhei o telefonema que Jango recebeu

Wilson Fadul tem 85 anos. É ex-deputado federal pelo PTB do Mato Grosso e foi ex-ministro da Saúde de João Goulart.

- O governo Jango era promissor. O PTB, com o Santiago Dantas, era um partido de massas, que estava crescendo e tinha uma proposta definida: a igualdade, que é melhor que a liberdade. Muita gente queria que o Santiago fosse o candidato à sucessão de Jango. Ele se preocupava com a vertigem com que Goulart administrava os fatos. Eu, que sempre almoçava com ele, em restaurantes de Copacabana, dizia que os fatos é que andavam muito rápido. A primeira vez que ouvi a expressão Frente Ampla, foi em uma fala dita por Santiago. Alguns políticos, ligados ou não a Jango, estavam preocupados com as eleições de 1965. Já visualizavam a possibilidade de isso não acontecer. Representantes de todos os partidos queriam assinar um manifesto.

O ex-Ministro da Saúde estava com o presidente João Goulart, no Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro, na noite em que foi deflagrado o golpe de 31 de março de 1964.

- Testemunhei um telefonema que Jango recebeu do Amaury Kruel. O ministro do Exército, que em 1954 assinou o Manifesto dos Coronéis contra o aumento de 100% que Getúlio Vargas deu ao salário mínimo (Jango era o ministro do Trabalho em 1954 e depois saiu do cargo), disse ao presidente que os militares exigiam a demissão de comunistas de seu governo. Jango pediu que ele evitasse o golpe. Mas isso não aconteceu.

O presidente viajou de madrugada para Brasília e depois para Porto Alegre. Nunca mais vi o presidente, desde então. No dia 8 de abril, tive um encontro com JK. Ele me disse que queria evitar as cassações. O Castelo Branco sabia que quem tinha força no Congresso Nacional era o JK. Castelo Branco não tinha nenhum prestígio, nem mesmo com os militares. O marechal convocou uma reunião que deveria ter a presença de JK na casa do Joaquim Ramos, irmão do Nereu Ramos. Estavam também o Ulysses Guimarães, o Pacheco Chaves, o Negrão de Lima.

Quando JK chegou, Castelo se levantou e disse: 'Meu presidente Juscelino, devo-lhe o fato de ter continuado na ativa (quando JK era presidente, não deixou que Castelo fosse para reserva, conforme havia determinado o comando do ministério do Exército)'. E, continuou: 'Meus companheiros de farda querem que eu seja presidente. Só serei se tiver o seu apoio'. Juscelino perguntou a Castelo: 'E o calendário eleitoral?'.

Castelo respondeu: 'É ponto de honra de meu governo que as eleições de 1965 se realizem'. Então, JK deu apoio a Castelo. Negrão de Lima fez uma reunião em sua casa. Estavam o José Talarico, a Ivete Vargas, o Doutel de Andrade, o Reinaldo Santanna. Chamaram o Castelo. Pois, havia rumores que o general cassaria o JK.

Castelo disse: 'Não tenho nada contra o JK. Você (dirigindo-se a Negrão) será o primeiro a saber'. No dia em que Juscelino foi cassado, Castelo ligou para a casa do Negrão. Dona Ema atendeu. Quer que eu vá chamar o meu marido? Não, muito obrigado, só diga ao Negrão de Lima que eu telefonei, disse Catelo - lembra o ex-ministro de Jango.

Os coronéis não aceitavam o aumento do salário mínimo

Clodesmidt Riani era presidente da CGT no governo de João Goulart e ajudou a organizar o célebre comício da Central do Brasil, no dia 13 de março:

- O presidente era um homem muito bom. É impossível descrevê-lo. Uma pessoa séria, digna, direita, que acreditava no futuro e era amigo dos trabalhadores. Eu o conheci na campanha para o aumento do salário mínimo, em 1953. Getúlio adorava o Jango, que pagou todas as dívidas da fazenda de Vargas e sabia falar sobre o arroz, a soja, a carne, a língua dos fazendeiros. Jango ficou encantado com Getúlio, em 1949.

Perguntou ao ex-presidente: 'O que posso fazer?'. Vargas disse: 'Quero que me ajude a administrar o PTB'. Jango conseguiu fazer do partido o maior entre os trabalhadores do Brasil. Getúlio foi eleito duas vezes senador nas eleições de 1946, pelo Rio Grande do Sul e por São paulo. Jango foi eleito deputado. Em 1953, fui designado para negociar com ele, no oitavo andar do Ministério do Trabalho. Eu era representante dos servidores públicos de Minas gerais, depois cheguei à CGT. Ele me atendia pessoalmente ao telefone. Viajamos aos EUA, em uma comitiva inesquecível, quando conheci o presidente Kennedy.

Jango caiu do Ministério do Trabalho por causa dos coronéis, que não aceitavam o aumento do salário mínimo. O Getúlio, o João Goulart e o Tancredo Neves promoveram em Minas Gerais o primeiro Congresso dos Trabalhadores para estudar o aumento do salário mínimo. Havia o IAPC, o IAPTEC, o IAPI, institutos de previdência que seguiram até o governo Jango.

Era uma maravilha a relação de poder antes do golpe: patrões, empregados e governo. Jango era um espetáculo. Jogava futebol, tinha dinheiro de família, não precisava ser corrupto, era amigo dos amigos, fazia graça pelo fato de ser coxo (de uma das pernas), dizia que no Carnaval iria se fantasiar de coxo. João Goulart e Getúlio e o próprio JK, que era uma pessoa muito prática foram os presidentes que mais olharam a questão da classe operária. Lula também. Mas o Jango era o meu amigo. A última vez que vi o presidente foi no Comício da Central. Havia até um telefone no palanque. Ajudei a organizar tudo. Antes de Jango chegar, ele ligou para o palanque: 'E aí, Riani, posso ir?'. Eu disse: 'O povo já chegou, presidente. Pode vir.

Aos 88 anos, Riani orgulha-se deter sido um dos melhores amigos de Jango, ao lado do ex-deputado e líder sindical José Talarico. Fundador do PTB em Juiz de Fora, ele foi amigo de Brizola e Itamar Franco, que também foram filiados ao partido. Hoje, ocupa-se com a preservação do Museu do João Goulart.