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Nossa finada paz

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O que restaria fazer frente a um túmulo onde jazem a paz e os cariocas que todos os dias tombam, vítimas da assassina violência? Se chorar cabe aos entes queridos, e são milhares que padecem das ausências, o melhor que se tem a esperar dos que governam - os que vão se despedindo e os que estão chegando - é um renovado esforço, conjunto e persistente, no sentido de trabalharem para reencontrar a paz do Rio antigo; a tranquilidade de poder andar pelas ruas, frequentar praças e praias sem ser molestado; o direito de voltar à casa e não ver os filhos feridos por balas perdidas, cuja maldade maior é exatamente a de preferir crianças inocentes. Voltar a respirar aquela paz que Gilberto Freire sentiu, ao chegar do Recife: “O ar lírico e sensual” com que a natureza beijava o Rio, em 1926 e por muito tempo depois. Mas o dia que acaba de amanhecer é para que todos também se lembrem, com profunda tristeza, das pessoas que morreram por nada. Os pobres anônimos.

O que melhor se pode apreender do dia sombrio e saudoso em que se reverencia essa legião de ausentes, é conferir respeito e valor à vida, sentimento que se deseja ver transformado em verdadeira obsessão por parte dos governantes que em breve estarão assumindo a administração fluminense. Mas é, igualmente, ocasião propícia para lembrar que um futuro melhor haverá de ser alcançado, não apenas com armas em punho, porque isso também os criminosos sabem fazer com maestria. O verdadeiro caminho, sem que se dispense o combate vigoroso aos delitos, é dar segurança à sociedade com outros valores, aqueles de verdadeira perenidade: educação, saúde e melhores condições urbanas. Tudo isso a serviço da pulsão da vida, que, sendo obra de todo dia, precisa começar e continuar pelas mãos dos legisladores e do Executivo. Eis o que cabe realizar, em nome da desejada ressurreição da finada paz dos cariocas, com um ponto final no perverso clima de desassossego e o cessar das mortes prematuras e indesejadas.

A celebração da memória dos finados é recomendada pela fé de todas as crenças religiosas, como forma de reverenciar a vida e as obras dos que partiram; como também não permitir que sejam para sempre esquecidos. Não é outra a função transcendente da saudade, esse sentimento comum e inevitável, que, quando novembro começa, avança ainda mais no coração de todos. Com ela opera-se algo maravilhosamente invisível neste dia – a presença da ausência. Ante a saudade curvam-se fracos e poderosos, crentes e ateus. Até mesmo os de coração empedernido cedem a ela, porque, seja quem for neste planeta, haverá de guardar alguma lembrança de ancestrais e amigos. O Pequeno Príncipe explica: eles nunca estão sós, porque, se partem, levam um pouco de nós. Como levaram, igualmente, os que nem conhecemos, mas deixaram vazio um pedaço da cidade que amaram enquanto viveram, e a deixaram com poucas esperanças.

O Finados vai passar, as flores logo também vão morrer, as velas se apagarão, e esse dia só voltará no ano que vem. O que recomenda que, passada a lembrança doída, permaneça a celebração da vida e das realizações dos ausentes e dos muitos inocentes, estes que ficaram sem sua cidade e sem seu futuro; pereceram e estão sepultados por culpa dos tentáculos do crime organizado, no seu mais alto grau de insensibilidade. Para que não sejam esquecidos, mas lembrados sempre, é que vai se abrir de novo o desafio de reconstruir no Rio a paz arruinada. Nada mais oportuno e justo que cobrar tal missão do governador recém-eleito e dos que serão convocados a assessorá-lo. Obra que, com certeza, não pode ser resultado da fórmula da violência contra a violência. Dente por dente? Não há de ser por aí.