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Uma sexta-feira de surpresas

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Por ADHEMAR BAHADIAN, [email protected]
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Publicado em 21/02/2021 às 08:49

Alterado em 21/02/2021 às 08:52

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Houve um tempo em que as sextas-feiras eram os dias preferidos de minhas semanas. Domingo sempre me pareceu sem caráter, dividido entre um jogo de futebol e um almoço cercado de encontros nem sempre entusiásticos com a família alargada. Tinha sempre alguma história macabra como a descoberta de que o caçula da Guiomar havia sido suspenso da escola por ter sido pego fumando maconha. Ou que o Austregesilo havia sido reprovado pela terceira vez no vestibular de medicina e estava considerando virar piloto de Fórmula 1. Ou a Mariazinha, quem diria, depois de tantos anos na moita resolveu apresentar finalmente seu namorado à família; uma paraibana de buço e maus bofes.

Meu avô via tudo isso, mas se recusava a ouvir. Ostensivamente, deixava pendurado nas orelhas os auriculares de seu aparelho contra surdez descaradamente desconectado da bateria e passava o almoço a olhar para aquele circo com um ar apatetado de quem havia perdido o último trem para Maracangalha.
Mas, esta última sexta-feira, a de anteontem, ganhou de longe o prêmio jabuticaba do ano, pois só no Brasil acontecem coisas assim, impensáveis, digamos, em Genebra, onde até a brisa do Lago tem hora para soprar.

Com essa pandemia, meu universo encolheu muitíssimo e costumo dividir meus dias de forma obssessiva entre os três cômodos de meu apartamento na Glória. De manhã, como tenho uma vista lateral para o aeroporto Santos Dumont, me levanto com o rugir dos motores do voo IT 453, procedente de Congonhas que pousa, chova ou faça sol, às 5.45h . Sempre me inquieto com as possíveis atividades desses paulistas a aqui aportarem às sextas-feiras em plena madrugada. Antigamente ainda se podia tolerar viessem aproveitar as praias do Rio ou emendar com uma namorada para um fim de semana em Búzios ou Parati. Mas, agora nesta Pandemia resistente imagino ser um grupo especial de masoquistas anônimos em fase terminal.

Após assistir ao pouso do IT 453, sempre tomo um expresso com a nostalgia dos que já se deliciaram com um "lungo" na Piazza Navona a admirar a imponente Embaixada do Brasil diante de belas fontes de mármore a fazer daquela praça uma das portas de entrada do Paraíso.

Quando termino o expresso e o sanduíche de queijo prato, já está na hora de esperar o pouso do LJ 874 procedente de Belo Horizonte às 7.18h, quando não atrasa e perde o “slot" para o RT 154 procedente de Congonhas, sempre carregado de executivos enfarpelados. Esses percalços de navegação aérea me criam um grande descoroço e me obrigaram a comprar pela internet um par de binóculos para me certificar de quem pousa, onde pousa e a que horas pousa. Já houve dias em que telefonei para a torre de controle de voos para me certificar se tudo estava em ordem e se tudo corria como planejado.

Nas primeiras vezes, digo-o com certo pudor, minha preocupação com a ordem natural dos voos não foi muito bem compreendida e tive que me identificar e, embora aposentado, vi que minha antiga posição de fiscal da Receita Federal ainda era respeitada. Hoje, já me conhecem até pelo nome, e na época de apresentar declarações de rendimentos ao fisco ainda me pedem uma sugestão se podem abater esta ou aquela despesa de suas rendas brutas. Só no Brasil. Imagina se fosse na Alemanha. Todos, inclusive eu, teríamos kaput.

Ë bem verdade que com a compra dos binóculos me tornei um pouco desleixado com alguns voos. Principalmente os a pousar ou partir entre 10h30 e meio-dia, viessem de São Paulo ou partissem para Brasília. Se ainda estivesse na ativa, diria que minha desatenção decorreu da chamada coisa fortuita ou exclusão de ilicitude, dependendo do capítulo do código penal consultado.

Ao procurar com meus binóculos a aproximação do RD 629, procedente de Teresina, não sei por que cargas d’água, se por tropeção ou piscadela do Demo, foquei no salão de um belo apartamento bem na linha do horizonte da Igreja do Outeiro da Glória. E o que vi me encantou. Rápidamente, enfiei minha máscara N89 e me abalei ao encontro desta sexta-feira cheia de surpresas.

Hoje, domingo, bem acompanhado, estou voltando no TE 354 previsto para pousar às 22h pontualmente. Imagina se fosse na Arábia Saudita.

Em casa, a secretária eletrônica anunciava três mensagens: na primeira, o ex-comandante do Exército em depoimento em livro admitia que seu famoso twitter ao Supremo Tribunal Federal teria sido objeto de cuidadosa redação por seu Estado Maior; a segunda, transcrevia a decisão do General Pazuello de que todas as vacinas a serem distribuídas nas próximas semanas deveriam ser inoculadas sem preservar frascos para a segunda dose. Estaríamos todos confiantes no calendário de novas chegadas de insumos e de novas vacinas; finalmente, a terceira mensagem anunciava que o Presidente da República interviera na Petrobras e indicara um outro General como seu Presidente.

Coisas do Brasil. Imagina se fosse na Turquia de Erdogan.

*Embaixador aposentado