ARTIGOS

Enfim, descobrimos o planeta Terra

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Por LEONARDO BOFF
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Publicado em 10/01/2021 às 18:18

Alterado em 10/01/2021 às 18:18

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Um dos efeitos positivos da intrusão do Covid-19 foi a descoberta do planeta Terra por toda a humanidade. Demo-nos forçosamente conta de que vigora uma íntima conexão entre a vida humana, a natureza e o planeta Terra. O vírus não caiu do céu. Ele veio como contra-ataque da Terra, tida como supersistema vivo que sempre se cria, autocria e se organiza para manter-se vivo e produzir todo tipo de vida existente neste planeta. Particularmente o quintilhões de quintilhões de micro-organismos que existem nos solos e mesmo em nosso próprio corpo, verdadeira galáxia (Antônio Nobre) habitada por um número incalculável de vírus, bactérias e outros micro-organismos.

O contexto do vírus, quase nunca citado pelos analistas das redes de comunicação, é o sistema capitalista antinatureza e antivida. Ele fez com que o vírus perdesse seu habitat e avançasse sobre nós. Esse sistema de produção e de consumo impiedosamente assalta a natureza, depreda seus bens e serviços e destrói o equilíbrio da Terra.

Esta nos responde com o aquecimento global, a erosão da biodiversidade, a escassez de água potável e outros eventos extremos. Todos de alguma forma participamos deste ecocídio, mas os atores principais – é forçoso dizê-lo e denunciá-lo – são o sistema do capital e a cultura do consumo desbragado, especialmente os milionários com seu consumo suntuoso. Portanto, tiremos a culpa de cima da humanidade pobre que minimamente colabora e é vítima do referido sistema.

O ser humano, sempre curioso por saber mais e mais, fez descobertas sem número: de novas terras como as da América, de povos, culturas, todo tipo de aparatos desde o arado até o robot, o submundo da matéria, os átomos, os quarks e o campo Higgs, o íntimo da vida, o código genético. E não param as descobertas.

Mas quem descobriu a Terra? Foi preciso que enviássemos astronautas para fora da Terra ou ir até a Lua para de lá ver a Terra de fora da Terra e finalmente, maravilhados, descobrir a Terra, nossa Casa Comum. Frank White escreveu em 1987 um livro The Overview Effect (tenho um livro autografado por ele de 5/29/1989) no qual recolhe os testemunhos dos astronautas emocionados até às lágrimas.

O astronauta Russel Scheickhart nos revela: ”Vista a partir de fora, a Terra parece tão pequena e frágil, uma pequenina mancha preciosa que você pode cobrir com seu polegar. Tudo o que significa alguma coisa para você, toda a história, arte, o nascimento e a morte, o amor, a alegria e as lágrimas, tudo está naquele ponto azul e branco que você pode cobrir com seu polegar. E a partir daquela perspectiva você entende que tudo mudou... que a relação não é mais a mesma como fora antes” (White, p.200).

Eugene Cernan confessou: ”Eu fui o último homem a pisar na Lua em dezembro de 1972. Da superfície lunar olhava com um tremor reverencial para a Terra, num transfundo muito escuro. O que eu via era demasiadamente belo para ser apreendido, demasiadamente ordenado e cheio de propósito para ser um mero acidente cósmico. A gente se sentira interiormente obrigado a louvar a Deus. Deus deve existir, por ter criado aquilo que eu tinha o privilégio de contemplar. Espontaneamente surgem a veneração e a ação de graças. É para isso que existe o Universo” (White p. 205).

De forma acertada, comenta Joseph P. Allen: ”Discutiu-se muito os prós e contras das viagens à Lua. Não ouvi ninguém argumentar que devíamos ir à Lua para podermos ver de lá a Terra de fora da Terra. Depois de tudo, esta deve ter sido, seguramente, a verdadeira razão de termos ido à Lua” (White, p. 233).

Efetivamente esta é a razão secreta e inconsciente das viagens espaciais: descobrir a Terra, o terceiro planeta de um sol de quinta categoria, dentro de nossa galáxia. O sistema solar no qual está a nossa Terra dista 27 mil anos-luz do centro da galáxia, a Via Láctea, na face interna do braço espiral de Orion. Esse sistema com a Terra ao redor é um quase nada e nós "une quantité négigueable", perto do zero. E contudo é daqui que a Terra através de nós contempla o inteiro Universo, do qual é parte. É através de nossa inteligência, que pertence ao próprio Universo, que ele se pensa a si mesmo. O que conta em nós não é a “quantidade” mas a “qualidade”, única, capaz de pensar, amar o Universo e venerar Aquele que permanentemente o sustenta.

Não apenas descobrimos a Terra. Descobrimos que somos aquela porção da Terra que pensa, ama e cuida. Por isso o ser humano (homo em latim) vem de “húmus”, terra fértil ou Adão que procede de “Adamah”, terra fecunda.

A partir de agora nunca sairá de nossa consciência de que temos descoberto a Terra, nosso lar cósmico e que somos a parte consciente, inteligente e amorosa dela. Porque somos portadores destas qualidades, nossa missão é cuidar dela como Casa Comum e de todos os demais seres, que nela habitam e que têm a mesma origem que nós, portanto, são nossos parentes.

Se assim é, por que a temos maltratado, superexplorado e estamos destruindo as bases que sustentam nossa vida? Se há uma lição que a Mãe Terra através do Covid-19 nos quer transmitir é seguramente esta:
“Mudem vossa relação para com a natureza e para comigo, se quiserdes que eu continue a vos oferecer tudo o que precisais para viver na sobriedade compartida, na fraternidade e sororidade universais e no cuidado amoroso para com todos vossos irmãos e irmãs da grande comunidade de vida, também meus filhos e filhas bem-amados. Outrora, em tempo imemoriais, eu vos propus “a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhei vida para que vivais com toda a vossa descendência. Essa promessa eu sempre manterei” (Deut 30,28).

Escolhamos a vida. É o apelo da Mãe Terra. É o desígnio do Criador.

Leonardo Boff. Ecoteólogo, escreveu O Covid-19: o contra-ataque da Mãe Terra contra a humanidade, Vozes, 2ª edição 2021.