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Um olhar de sangue

A ladroagem despiu todas as lantejoulas de uma honestidade falsamente maquiada de pudores e desvendou as obscuras vielas da cobiça

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Os fatos ocorridos no Brasil nesta semana correram o mundo. Não melhoram em nada nossa imagem . Ao contrário, os jornais internacionais apenas mudaram o Brasil das páginas policiais para as páginas do humor grotesco. Nelas, um destaque especial para o garantismo jurídico de um juiz da Suprema Corte e o ridículo de uma ladroagem em cuecas de um senador da República, vice-lidar de um governo autodeclarado impoluto.

O garantismo jurídico, soberbo e grandiloquente libertou um dos maiores traficantes do país. A ladroagem despiu todas as lantejoulas de uma honestidade falsamente maquiada de pudores e desvendou as obscuras vielas da cobiça.

Cúmulo da insensatez, a filigrana jurídica veio ofuscar em 24 horas o momento mais nobre da Corte, quando dela se despedia o decano inatacável em um voto corajoso apoiado na melhor doutrina e na dignidade da toga.

No primarismo nauseabundo da pilantragem senatorial, uma chifrada de boi xucro na terra das boiadas e dos bois-bombeiros. Uma derrama de estrume na mais alta assembleia dos patrícios deste país, de onde deveriam vir sinais de civilidade e respeito à cidadania.

Semana triste. Nada se fez. Nada se moveu. Um amigo morreu de Covid. Nas dobras e nas entretelas das mentiras e dos impasses circunstanciais uns, irremovíveis outros, a taxa do desemprego sobe a 14 milhões, sabidamente a ponta do iceberg do descalabro social. O responsável pela gestão de nossa economia recomeça a regurgitar a massa de idéias daninhas onde sempre sobra chicote para a pele curtida da plebe e da classe média.

Aderna em mar pantanoso o outrora soberbo transatlântico Brasil, cada vez mais desacreditado nos mares que ainda navega e nos mares onde sequer permitem sua entrada, tal seu desvario desbussolado, seu delírio de aristocrata de hospício e sua fuligem carcinogênica, alimentada pelas imensas toras de sua floresta.

Nosso gerente econômico pede prazo para pensar. Que passem primeiro as eleições municipais para que depois delas se anuncie o montante e o prazo da assistência emergencial. Nosso mecânico de equações tristes da macroeconomia da miséria nos informa ser impossível oferecer este pão dormido aos famélicos. Pão em que nunca acreditou e afinal o único instrumento afinado nesta orquestra de desarranjos.

Nosso posto Ipiranga com suas cores desbotadas e suas paredes descascadas se apega ao teto onde gira incontrolável uma rosa dos ventos despedaçada. Triste figura sem Dulcinéia e com moinhos de ventanias na cabeça.

Reizinho da ciência econômica, reúne em sua cachola os saberes dos ministérios da fazenda, da indústria e do comércio, do planejamento. Mete os bedelhos na política externa econômica e a pretexto do suposto comércio livre abre com sua enorme boca de tubarão o mercado do país à exploração comercial sem qualquer reciprocidade, para a alegria e o desprezo dos aliados do desmonte.

Sua enorme vaidade deveria dedicar pelo menos meia hora de atenção ao último relatório econômico mundial recém-publicado pelo Fundo Monetário Internacional. Talvez dele adviessem argumentos para dar nova direção à economia brasileira. Talvez dali surjam argumentos para iluminar seus inúmeros pares do mercado financeiro e nossa tacanha elite endinheirada.

E dali talvez surja a clarividência de virar a página deste Deus nos acuda em que mergulha o Brasil. E não me venha a dizer serem os economistas do Fundo Monetário Internacional controlados pelo "vírus chinês". Calce as sandálias franciscanas e leia também no embalo a Encíclica do Papa Francisco. Meu Caro Posto Ipiranga, com todas as vênias, Vossa Excelência está mais ultrapassado que terno da Ducal. Antes que esqueça: dá uma lidinha nas crônicas do Paul Krugman. E pare de acreditar nos tuítes do Trump.

Se Vossa Excelência ler o relatório do FMI verá como são recomendadas as medidas de afrouxamento fiscal, de imposição de impostos sobre os ricos e as grandes fortunas, de investimentos públicos e privados em infraestrutura, enfim de medidas na direção oposta das defendidas por Vossa Excelência e o sempre inefável Meirelles, companheiro de peripécias. Tenho simpatia pelas ideias do Ministro Marinho. Desculpe, mas cortar-lhe unilateralmente os vencimentos é baixaria.

Talvez Vossa Excelência tenha vontade de me agradecer essas dicas despretensiosas. Faça não. Tudo que aqui digo não surge de solidariedade com seu plano de receber o premio Nobel de Economia. Neca de pitibiriba.

Hoje ao andar uns poucos metros pelas calçadas desta maravilhosa cidade, no mesmo bairro de Vossa Excelência, fui abordado por um jovem cor de bronze - visivelmente um dos 14 milhões - a me pedir uma grana para comer. Eu estava de máscara, ele não. Me olhou com um olhar injetado de sangue. E de ódio. Por enquanto - até quando? - é só o olhar.