ASSINE
search button

Guerra às florestas

.. -
..
Compartilhar

Tive a sorte de passar a infância numa casa cheia de árvores. Lembro-me de esticar os braços, grudar o corpo no tronco do ipê amarelo e comparar minha altura com a da enorme planta. No alto, os galhos da copa, bordados de amarelo, eram o mais próximo do céu que um ser vivo podia chegar. Aos poucos, a gente aprende a escalar na madeira viva. Sempre descalço, para não escorregar. Pisa no vinco e nada de confiar nos galhos secos. A goiabeira verga, não quebra: mais confiável. “Mas sobe depois das dez da manhã, quando o sol já secou todo o orvalho”, dizia o Seu João, da quitanda onde eu gastava as moedas com laranja lima. O troco vinha em balas de goma.

Lá pelos vinte anos, peguei o carro e toquei para o sul. Estávamos em quatro. Perto de Iguape, a mata na Serra do Mar dava lugar às plantações de banana. Foi tudo muito rápido: uma serpente cruzou a estrada e um dos amigos no banco de trás gritou: “Olha a cobra”. O outro, ao seu lado: “Mata”. Por instinto, pisei no freio, mas não o bastante para evitar a serpente. Apenas ajeitei o veículo para que as rodas não matassem o animal. Contei com a sorte. O espelho retrovisor mostrou a cobra seguindo à outra margem. Deve ter se encolhido ao sentir o veículo se aproximando. Segundos depois, aliviado, tive vontade de jogar o sujeito no banco de trás porta afora. Ele que andasse os poucos quilômetros até nosso destino. E, caso se deparasse com outro réptil, que o matasse sozinho. Calei-me.

Chegamos à cidade e a praia nos esperava. Paramos o carro a uns cem metros da areia. À frente, um trecho de mangue nos separava da diversão. Outra opção para chegar à praia era uma trilha pelo meio do mato. O sujeito que pouco antes havia ordenado a morte da cobra não cruzou o mangue. Tampouco pegou a trilha, avesso ao contato com a natureza. Nos dias seguintes, não perdemos uma chance sequer de pegar no pé do rapaz. Fizemos muitos amigos na cidade e aproveitamos as maravilhas do local. Quanto ao tal rapaz, foi a última vez que o vi.

A bonita Iguape deixou saudades. Mas nem todos devem sentir sua falta, como o covarde colega matador de animais, vítima de nossas brincadeiras. Outro sujeito, o mandatário do executivo nacional, também avesso a plantas, bichos e gente? decerto busca esquecer a região no Vale do Ribeira, onde passou parte da vida. Aprova leis para desmatar mangues e faz vistas grossas para a destruição de matas nativas. Momentaneamente privilegiado pela posição que ocupa em Brasília, favorece o lucro de grandes corporações imobiliárias em detrimento da natureza e das populações que vivem dela.

Em seu livro “Khadji-Murat” (Editora 34, tradução de Boris Schnaideirman), Tolstoi descreve um tártaro, planta originária dos campos na Rússia. O escritor relata a agonia da erva, cortada, um dos braços decepados. No livro, uma das flores, suja na ponta, pendia para baixo. Outra fora arrancada. A terceira, coberta de lama negra, mantinha-se erguida e o tufo que a sustentava havia sido pisado por uma roda. Era “como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo, revolvendo-lhe as entranhas, e lhe decepassem um braço e furassem os olhos, mas ele sempre se mantivesse firme, sem se entregar ao homem, que destruíra todos os seus irmãos ao redor.”

Num país que tem a segunda maior extensão de mangues no planeta, a mata nativa de Iguape, assim como a planta nos campos do Norte, agoniza. Berçário de inúmeras espécies marítimas e habitat de várias outras, sofre, tal qual a população ribeirinha no seu entorno, com o descaso de alguns homens e sua insana capacidade destrutiva. Tolstoi compara a resistência da planta ao guerreiro “Khadji-Murát” e seu esforço para sobreviver às investidas do exército russo. O quanto nossas florestas e seus habitantes podem resistir nesta covarde guerra encabeçada pelo governo federal? Guerra em que uns poucos, apenas, serão beneficiados?

Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.

Tags:

floresta