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Perplexidades

Trump não pretende deixar a Casa Branca sem mover céus e terra nos intrincados mecanismos dos dispositivos eleitorais americanos

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Jornais dos Estados Unidos informam ter o candidato Democrata Biden contratado uma equipe de advogados constitucionalistas para auxiliá-lo no pós-eleições . A razão seria a insistência de Trump em afirmar pública e reiteradamente a certeza de que sua eventual derrota só seria possível em caso de fraude. Trump não pretende deixar a Casa Branca sem mover céus e terra nos intrincados mecanismos dos dispositivos eleitorais americanos.

Minha primeira reação foi de perplexidade porque jamais imaginei que o tradicional e elegante procedimento da maior nação democrática do planeta pudesse abandonar o “fair-play” quando o candidato derrotado é sempre o primeiro a reconhecer sua derrota e telefonar para o vencedor e cumprimentá-lo, por mais renhida ou estreita tenha sido sua vitória. Acreditei ser blefe de Trump recorrer ao tapetão, impensável num país de sólidas e históricas tradições democráticas.

A perplexidade se transformou em dúvida após ler longo artigo no “ New York Review of Books” - um dos mais liberais veículos da intelectualidade americana -, onde um especialista em eleições e processo eleitoral elencava não duas ou três, mas quase uma dezena de malhas na legislação americana pelas quais seria possível e até mesmo viável o eventual pleito de Trump ser levado à Suprema Corte americana e ali decidido.

Não cabe capitular os argumentos listados no artigo, até porque a maioria deles me parece de extremo “juridiquês “, idioma que não falo e muita vez sequer compreendo. Basta recordar: nas eleições americanas o candidato mais votado no pleito popular nem sempre é efetivamente eleito. Exige-se maioria nos chamados colégios eleitorais dos Estados da União. Ocorre - e nas ultimas eleições ocorreu - ser preterido quem, embora tenha ganho no voto popular - caso de Hillary Clinton - possa perder no Colégio Eleitoral por proporções mínimas. O artigo esmiúça em riqueza de filigranas o método contábil daquelas aferições. Passei da perplexidade ao temor.

Muito provavelmente iremos dormir na noite das eleições sem sabermos se Biden, eleito por maioria, terá a legitimidade de sua eleição contestada por Trump. O futuro dos Estados Unidos da América entrará em zona de turbulência.

Acrescente-se a isso a temperatura da corrida eleitoral, onde Trump nega a capacidade intelectual e física de seu oponente, o considera esclerosado e incapaz de exercer a presidência. Trump propõe um exame médico apurado como pré-condição para o pleito. Embora a hipótese já tenha sido descartada, caso fosse eu auxiliar da campanha eleitoral de Biden talvez sugerisse aceitar o desafio se Trump se mostrasse disposto a passar também por um exame psiquiátrico por junta internacional escolhida de comum acordo entre as partes. Imagina se a moda pega.

A perplexidade adquire mais de 40 tons de cinza quando se ouve a logorréia de Trump em seus comícios e entrevistas com afirmações profundamente distanciadas da realidade e muito próximas das que ouvimos de terraplanistas e outros deliróides da mesma estirpe. E a perplexidade se torna ainda mais funérea ao vermos milhares de eleitores aplaudindo delírios cotidianos e se deixando embalar por certezas e diagnósticos a lembrar nosso Chacrinha, quem, pelo menos, nos advertia ter vindo para confundir e não para explicar.

Tal é o mundo em que vivemos, onde espertezas e calhordices são embaladas em “fake news” ou então travestidas de solidariedade de estadista, como na afirmação de Trump sobre a Pandemia, de cuja letalidade sempre soube mas escondeu do povo americano, sugerindo medicamentos ineficazes, contestando o distanciamento social, contribuindo para uma mortandade como se pessoas fossem moscas e presidentes ratos.

E assim gira o mundo e assim giramos nós em nossa perplexidade e nosso temor de que esta eleição ainda possa dar pretexto para uma intervenção militar num país vizinho ao nosso esteja a flutuar nas planilhas de um estadista do apocalipse. Trump pode retornar aos tempos da "gunboat diplomacy“ sob o manto diáfano da hipocrisia da defesa de ideais democráticos.

As eleições americanas de 2020 podem dar início a um ciclo de desrespeito à soberania popular a contaminar eleições vindouras em democracias débeis ou instáveis. Sobra para as sociedades uma luta desigual entre o direito e o autoritarismo como vemos por exemplo em Belarus.

O modelo sui generis de perpetuação no poder, estilo Putin, parece atrair mentes narcísicas como as de Trump e outros mundo afora. Todo ditador desde Nero e Calígula, passando por Hitler, Mussolini e Stalin, acredita-se imprescindível para a salvação da pátria.

Nas eleições de novembro nos Estados Unidos jogam-se os dados em que o vencedor poderá restaurar os princípios da alternância democrática ou dar inicio a uma nova forma de governos autoritários. A Democracia corre o risco de se tornar uma aristocracia de minorias argentárias. Afinal, a quem beneficia um mundo de desigualdades sociais crescentes? A quem interessa uma sociedade mantida a pão, água e circo? A quem interessa o revigoramento de uma espúria entente entre o capital financeiro e crenças religiosas de mansidão e recalibragem de Direitos Humanos?

A terra talvez seja realmente um plano inclinado em direção ao caos. Em São Paulo a chuva ficou preta.

Embaixador aposentado