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Anormalidades

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É abrir os jornais e se deparar com discussões a respeito de como será o novo normal. Embora eu prefira refletir sobre o que seria o novo anormal, entendo a busca por regras do cotidiano sinalizando caminhos previsíveis, dado o perigo a que nos submetemos ao sair de casa. Resignado, no entanto, à pandemia, tive de me adaptar a essa pós-normalidade. Quer um exemplo?

Mais tempo em casa, receoso de ir para a rua com o cachorro três vezes por dia e topar com o vizinho sem máscara na calçada, segui a sugestão de um amigo e assinei um canal de tv para pets. Normal? Para o cão, talvez. Já eu tenho tido alguma dificuldade para me adaptar.

Primeiro: se antes da pandemia o cachorro assistia à tv comigo, agora ele é o protagonista. Sou um mero coadjuvante e antevejo o dia em que ele vai dominar o controle remoto. Semanas atrás, ouvi no rádio que há mais de 1 bilhão de pets no mundo. Sobre os cães, se antes ficavam no quintal, agora já romperam as portas das casas, dominaram o sofá e dividem a cama com seus donos. Ah, mas o controle remoto? Depois vem o quê, a cerveja gelada? O miolo do contrafilé no churrasco de domingo?

Os caras do canal são bons. Dizem que as cores usadas nas programações consideram o espectro visual canino. Numa pesquisa, detectaram as brincadeiras preferidas e os sons que mais acalmam nossos melhores amigos. É verdade, meu cachorro parece entretido. E eu também. Embora ele não demonstre muita empolgação, não ouço um latido quando a tv está ligada. Só fico apreensivo quando aparece um pato na tela: seu olhar fixo na ave me faz mudar de canal antes que destrua o aparelho.

É o mundo das telas. De uns 10, 15 anos para cá, passamos boa parte do dia interagindo através de celulares e notebooks. E se eventualmente nos deparamos como que abduzidos pela realidade virtual de bits e bytes, feito avatares de nós mesmos, por outro lado observamos um mundo multifacetado que se nos oferece sob perspectivas antes inimagináveis, um estímulo à criatividade humana – e canina?

O autor Serge Tisseron, no seu livro “Sonhar, fantasiar, virtualizar”, cita a virtualização como um processo “que permite mudar o ângulo de ataque na resolução de um problema, libertar-se dos hábitos de pensamento e finalmente inovar, desde que, é claro, ela seja seguida por uma atualização que permita recolher seus frutos”. A nova normalidade, portanto, pode nos dar ferramentas para enfrentar os imprevistos que se apresentam. Os trabalhadores em home office que o digam: à parte a chatice de intermináveis reuniões online, nos últimos meses aprendeu-se que algumas situações profissionais prescindem da presença física humana. Oxalá sejamos inovadores o suficiente para compensar as perdas na economia decorrentes do esvaziamento dos escritórios nas grandes metrópoles.

Nossa presença doméstica deve ser ótima para os cães. Afinal, eles não têm do que reclamar: ganharam mais tempo de companhia humana, podem dormir na cama, assistir à pessoa na tela jogando bolinha ao amigo virtual, que cai no lago enquanto uma trilha sonora fofa os acalma e nos enche de tédio. Quem mandou ficarmos tanto tempo fora de casa? Ao voltarmos, perdemos a poltrona. Por uma convivência pacífica, vejo um futuro próximo em que teremos de negociar com os fiéis companheiros. Ok, meia hora de bolinha e o miolo do contrafilé. A cerveja, nem pensar: o veterinário proibiu. Topo ceder o controle da tv, desde que você não urine nas pernas da mesa e poupe o travesseiro. A ração? Nada de light. E carrega no petisco. Ah, e nada de reduzir meus passeios na rua. Três vezes, no mínimo. Quem disse que cães não sabem negociar? Talvez tenham aprendido num curso online.

Novo normal?