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Quem tem medo da Independência do Brasil?

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Neste sete de setembro teve início a marcha do Brasil para o bicentenário da Independência em 2022. Na última segunda feira, dois discursos e uma entrevista retrataram de forma inequívoca os impasses e os possíveis desenlaces na entrada do Brasil no século 21.

Lilian Schwarcz , co-autora de um livro indispensável “Biografia do Brasil“ ( Cia das Letras), em entrevista no último Roda-Viva, no Canal Cultura, oferece o contraponto indispensável para a melhor compreensão dos discursos do presidente Bolsonaro e do ex-presidente Lula. O primeiro difundido em cadeia nacional ao país, o segundo relegado a redes sociais.

O pronunciamento do presidente recebeu imediata atenção da sociedade brasileira, principalmente no momento difícil trazido por mazelas de saúde pública e de políticas econômica e social a confundir mais do que esclarecer os objetivos do governo. A reação de descontentamento barulhento ouvida em várias cidades brasileiras talvez retrate decepção muito mais com o não dito do que com o dito. Há um palpável mal-estar com a situação econômica cuja responsabilidade recai muito mais sobre o ministro da Economia, abespinhado com críticas sempre mais contundentes do meio político, inclusive de simpatizantes do governo.

As palavras do presidente recordaram seu juramento aos dispositivos constitucionais e ao sistema democrático, acompanhadas de uma menção intempestiva aos idos de1964, página virada de nossa história faz mais de três décadas. A inexistência de análise da Pandemia e seu impacto nas famílias de mais de 120 mil brasileiros devem estar na raiz do “panelaço“ e expõe a inabilidade política do redator presidencial. Há muitos jovens no Itamaraty com melhor sintaxe e muito maior sintonia política com a alma nacional.

Temo ser a anemia do texto presidencial decorrente dos embates intestinos nos corredores governamentais a escorrer pela imprensa, pelas redes sociais e sobretudo para uma sociedade paralisada pela insegurança do dia a dia e o temor do dia seguinte.

As idas e vindas de nosso ministro da Economia me sugere o imortal Zeca Diabo sempre a responder com um “sim, sim; não não“ a perguntas simples e complexas, a emprestar-lhes uma névoa de incompreensibilidade ou alternativamente o dogma da sacralidade.

Ninguém aguenta mais um arquiteto a exigir respeito absoluto ao teto e às calhas de uma edificação a se corroer por falta de pilares, paredes, portas, janelas e dobradiças.. Ninguém aguenta mais a aposta em reformas administrativas ou tributárias que no frigir dos ovos vão resultar em retrocessos históricos como uma CPMF ou uma babel no serviço público com a criação de cinco carreiras incompatíveis com a modernidade administrativa.

Roga-se ao senhor ministro da Economia deixar de lado o seu zecadiabismo e não dizer no dia sim que os salários do setor privado são menores que os do setor público e no dia não que os ministros do Tribunal de Contas da União poderiam ganhar no setor privado seis a dez vezes mais do que ganham atualmente. Essas coisas confundem. E os médicos? Os professores? Os fiscais do Ibama? Os pesquisadores da Embrapa?

Na política externa, sobretudo nos arranjos econômicos bilaterais ou multilaterais, Sua Excelência também subverte a ordem dos fatores como se não alterasse o produto. A exportação desenfreada do arroz, por incúria, descuido com estoques reguladores e valorização do dólar acendem as chamas da bruxuleante inflação, desorganiza o mercado interno e ressuscita vozes macambúzias do controle de preços. A culpabilidade dos donos de armazéns em buscar lucro acima de zero. Francamente.

E o que leva o governo a reduzir a zero as taxas de importação do etanol americano sem qualquer contrapartida? Será que Trump merece o tratamento preferencial a justificar-se no caso de um Haiti destroçado por terremotos? Uma eventual administração Biden verá com alegria essa mãozinha brasileira para ajudar a reeleição de Trump? O chanceler brasileiro deveria ser capaz de interpor-se à ideologia do ministro da Economia e o desarranjo de nossa imagem soberana. Mas, sonhar para quê?

A leitura desapaixonada do texto de Lula não encontrará nele o menor vestígio de sectarismo anti-democrático, de filiação ideológica incompatível com a Constituição brasileira ou ameaça às instituições democráticas. Até aí os discursos de Bolsonaro e Lula se assemelham. A partir daí as críticas de Lula adquirem um caráter de oposição a atingir a medula do pensamento político e econômico do governo.

As considerações de Lula certamente serão sujeitas a controvérsias na mesma medida em que as políticas sociais do governo também o são. O que me parece merecer leitura é o fato de que Lula consegue articular suas críticas de forma programática e com uma mirada no desenvolvimento econômico e social do Brasil nos próximos anos.

Reside neste caráter programático a atração maior do texto de Lula, o primeiro que parece consolidar uma plataforma de debates para a oposição democrática ao governo. Não creio que o texto tenha a pretensão de se apresentar como avesso ao debate, à crítica ou a reformulações de forma ou substância.

A sociedade brasileira está polarizada como fruto de percepções verdadeiras (a pandemia e suas consequências) e falsas ou meramente ideológicas (revigoramento do comunismo, segunda guerra fria). O desafio será aprofundar o diálogo em centros de estudos, nas universidades e nos partidos. Minha formação acadêmica e profissional me ensinaram que a inteligência e a razão são mais eficazes e mais duradouras que o obscurantismo e a violência.

O leitor ou leitora que me acompanhou até aqui deve estar a indagar o porquê de ter mencionado Lilian Schwarcz. A razão é muito simples: a entrevista dela na Roda Viva é uma excelente introdução aos problemas básicos de nossa Independência de 1822 até hoje e muito ajudará, repito, como contraponto aos textos de Bolsonaro e Lula, que, esclareço, não são por ela analisados.

Em 2022, comemoraremos em setembro o bicentenário da Independência do Brasil. Em outubro, o Brasil irá às urnas eleger o presidente de nossa efetiva entrada no século 21.

Quem tem medo da Independência do Brasil?

*Embaixador aposentado