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Maré de riqueza

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Por volta das seis da manhã, o grupo se reunia em frente à porta da academia. Ajuntávamos as mochilas e pé na estrada. No caminho, uns poucos discutiam a melhor estratégia, como estaria a maré, o nadador forte da outra equipe que teria chance de subir ao alto do pódio na competição de águas abertas. Para mim e a maioria, o pensamento primeiro era completar a prova, motivados pelo sabor de uma gelada no bar que finalizava os encontros. Era assim, pelo menos uns dois sábados por mês.

Uma das provas, me lembro bem. Inverno, nadaríamos numa represa. Ao lado do instrutor do grupo, avaliamos o circuito formado por três boias. A terceira, só eu não via. ‘Ok, da próxima vez, o jeito é trocar a lente de contato’, confortei-me. Fomos então molhar as mãos, pés, nuca, acostumar o corpo com o ambiente desfavorável à nossa condição de primata. O conforto durou até colocar o dedão na água: os nervos se comprimiram, o frio tomou o tornozelo, joelho, subiu feito raio pela espinha e arrepiou até os pelos da orelha que, na época, começavam a se pronunciar.

Eram tempos de eleição presidencial e o prefeito da cidade, alheio ao frio que acometia nossas almas cobertas por uns poucos pedaços de tecido, relatava os feitos do seu candidato preferido. Naquele momento, se dependesse de mim e dos outros que ali estavam, sua carreira política e do presidenciável seria enterrada no fundo da represa de água gelada. Terminada a prova, um enfermeiro nos aguardava ao lado da ambulância. Fomos recebidos com um copo de chocolate quente, cobertor e olhar de reprovação. Era como se ele nos perguntasse, preocupado com as vidas na água e visivelmente contrariado, se não tínhamos nada melhor a fazer num sábado de manhã.

Ao ver na televisão as imagens de gente sem máscara presa no congestionamento para curtir o feriado de 7 de setembro, praias e bares lotados, me recordo da expressão carrancuda do enfermeiro. Estaria ele se questionando se não temos mais nada de importante a fazer? Ficar em casa no feriado, por exemplo? E nos darmos conta de que somos um dos países mais afetados pela pandemia? Dez, quinze dias à frente, não estarão os hospitais lotados de turistas?

Mas uma coisa mudou: a relação de uma parcela dos meios de comunicação com sua audiência parece mais branda. Se antes, cada matéria jornalística de gente exposta à covid-19 era acompanhada de alertas de especialistas e apresentadores com expressões indignadas, cenas atuais mostram a alegria de motoristas levando suas famílias a um merecido lazer, depois de meses confinados. É a vida voltando ao normal. Interessante notar que essa postura light, quase saudável por uma parte da mídia, vem acompanhada do crescimento dos níveis de aprovação do mandatário do governo federal.

Numa outra prova, o Atlântico à frente, toca a sirene e os competidores se acotovelam, buscando espaço para otimizar suas braçadas. Passada a arrebentação, o tempo vira, as ondas crescem. Acontece. Ao Corpo de Bombeiros, resta acompanhar os nadadores. Integrantes da corporação remam em seus caiaques, delimitam o percurso, indicam a direção da terra. Estamos a uns trezentos metros da costa. Ao longe, a Serra do Mar e seu gigantismo verde-escuro traz a ilusão de uma proximidade que não existe. Os braços estão pesados, lutamos para chegar. Vencer, definitivamente, não importa. Nado ao lado de uma pessoa que não conheço. A pessoa tampouco se afasta de mim. Busco na costa um ponto de referência e vejo a fachada de um banco, desses grandes. Nado em direção a ela. Quase na praia, uma onda nos engole. A força da onda me afasta do novo amigo. Dou piruetas embaixo d´água, topo com a cabeça no fundo de areia, não sei onde está a superfície. Por sorte, o mar me devolve à praia. Ao me levantar, pés no chão firme, ainda tonto, vejo com clareza a fachada do banco. Suas cores são vivas e o prédio parece alheio às intempéries.

Tempos ruins fazem ricos marinheiros. 

Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.