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Realidade nada virtual

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Para quem trabalha à distância, os tempos são outros. “Sou de TI, não sou muito fã de gente”, brinca um amigo. “Não fosse pelas reuniões, seria perfeito. Só sinto falta das paqueras no cafezinho”, diz outra pessoa. Tem gente que demora a se ajustar: “Estava muito sozinho, então adotei um cachorro. Agora, além do meu chefe, cliente enchendo a paciência, tem o vizinho e o síndico batendo na minha porta. Não posso nem ir no banheiro que o bicho começa a latir”. A melhor, de uma professora cujo filho tem aula online com ela: “Não aguento mais o João. Ele vive dando ‘migué’ nos professores, dizendo que a internet tá fraca. Ah, desliga o vídeo e deixa só o som da plataforma, enquanto fica no whatsapp batendo papo com os amigos.

Outro dia, você acredita? Estava eu dando aula do quarto e ele na sala – ela deu ênfase no ‘eu’, batendo o indicador algumas vezes contra o próprio peito, quase dava para ouvir o barulho do impacto – e ele, acho que esqueceu que era a mãe do outro lado, deu a mesma desculpa. Quase matei o sujeito!”

Como é possível que parte dos trabalhadores em home office permaneça em casa por mais tempo do que durar a crise sanitária, estudos são publicados para entender as implicações dessa nova situação laboral. Pesquisa realizada em julho de 2020 pela FIA/FEA – USP e publicada em portais jornalísticos indica que 76% dos entrevistados enxergam o trabalho à distância de forma positiva. Gestores, profissionais liberais, professores tendem a se adaptar à realidade imposta. Já a pesquisadora Tânia Mara Campos de Almeida, em artigo publicado no livro “Janelas da Pandemia” – Editora Instituto DH, agosto de 2020 – chama atenção para o acúmulo de funções a que mulheres brasileiras foram submetidas quando começaram a trabalhar em casa. Segundo a pesquisadora – que cita dados do IBGE de 2018 – antes da pandemia, as mulheres gastavam cerca de 21 horas semanais em atividades com a casa e “dependentes”, contra pouco mais de 10 horas dos homens. “Com o confinamento, a tendência é de aumento dessa lacuna, sobrecarregando sobremaneira as mulheres... Quando se soma à essa carga o home office, as mulheres encontram-se hoje em trabalho exaustivo...”, conclui a pesquisadora.

No longo prazo, como seria a adaptação a este novo trabalho remoto? O fascínio humano pelo universo de telas é suficientemente forte para suprir a ausência do cafezinho com o amigo, happy hours nos finais de tarde, aulas presenciais, festas de final de ano? Como estabelecer vínculos fortes e eficazes num mundo onde o contato presencial é substituído por mouses e teclados? É com essa realidade que 8,6 milhões de brasileiros, ou aproximadamente 10% da população empregada, lidam hoje.

Os outros 90% tem de enfrentar um outro cenário: saem de casa para trabalhar e são expostos diariamente ao vírus que, até o momento, matou mais de 120 mil brasileiros. Tempos nada remotos. 

Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.