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O mercadinho da Sra. Katástrofe

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Lá pelos fins dos anos 40 do século passado, costumava passar alguns fins de semana na casa de minha avó. Uma das rotinas desses dias era acompanhá-la a compras no mercadinho da Sra. Kastrup, onde minha avó sempre era recebida com grande gentileza e atenção. Dona Kastrup era bem mais moça e sempre encontrava um jeito de puxar uma conversinha sobre os momentos do mercadinho e de sua clientela. Havia um certo tom fofoqueiro nela.

Dona Kastrup era casada com o senhor Aécio, responsável pelo dia a dia no balcão e esbanjava o tal do espírito animal, na época conhecido como instinto comercial. Para não atenazar sua paciência, estimado leitor, abrevio em poucas palavras o que talvez merecesse resmas de papel almaço e apenas recordo o crescente sucesso do mercadinho da dona Kastrup. Devido à engenhosidade de Aécio, oferecia o pioneríssimo serviço de crediário aos mais pobres que levavam adiantadas as compras do mês e só as pagavam na data do recebimento dos salários. .Aécio produziu um sistema de cadernetas e as clientes assinavam suas compras e iam embora felizes da vida.

Mas como não há mal que sempre dure nem Trump que sempre se reeleja, um dia explodiu no mercadinho de Dona Kastrup uma brigalhada feia a exigir a presença dos bonés-vermelhos como assim era chamada a mais temida e respeitada força policial do Rio de Janeiro. Aparentemente, o marido de uma das clientes de Aécio havia encontrado disparates e divergências nas contas da caderneta de sua mulher. Diante da arrogância de Aécio que desacatara o marido e o chamara de pobretão a não ter onde cair morto, Seu Omair, conhecido por seus colegas no porto como Bonga, deu-lhe um bofetão nas ventas a exigir suturas em hospital.

No disse-que-me-disse, várias, na realidade quase todas as clientes, ao reexaminarem suas cadernetas ou as terem examinadas por seus maridos, encontraram nelas fartos erros e gordas inclusões a tornar as contas mensais sempre crescentes e quase impagáveis. Deu-se queixa na polícia e na Cofap e Dona Kastrup queixou-se com minha avó sobre a ingratidão humana pois seu marido, Aécio, só pretendia auxiliar os mais desvalidos aliviando-lhes as penas da vida. Me lembro minha avó ter contado na hora do jantar toda história para meu avô, também micro-comerciante no setor de camisaria. Vovô olhou com carinho para ela e para mim e se limitou a dizer que o mercadinho já era conhecido há muito tempo como o mercadinho da senhora Katástrofe. Com K mesmo, muito mais forte que o C, pelo menos na dignidade de meu avô.

Lembrei-me deste evento, escondido nas membranas de minhas memórias infantis, porque hoje, já entrado na “melhor idade”, como dizem os irônicos das funerárias, estou a ouvir com uma frequência incômoda nas televisões e a ler nos jornais uma expressão que me provoca a mesma sensação de quando minha professora do Primário, Dona Tita, deixava o giz arranhar o quadro negro. A sensação mais próxima do arrepio da alma.

Mas, vamos lá: a expressão é “o mercado não aprovou” ou sua variante “o mercado reagiu com preocupação“. O problema é que não sei de que mercado se está a falar. Quando comecei a me interessar pelo processo de desenvolvimento econômico do Brasil, a palavra mercado era sempre acompanhado de outra a limitar-lhe ou expandir-lhe, conforme a visão teórica ou ideológica do autor. Mercado interno significava o mercado brasileiro com os seus milhões de bocas a alimentar, milhões de jovens a estudar e milhões de adultos a trabalhar. O desenvolvimento do Brasil se aliava ao crescimento econômico do mercado interno, o que levaria ao aumento da renda e por via de consequência à vitoria contra a pobreza e ao desemprego.

Mas, o mercado gosta de uma politica econômica chamada teto de gastos, uma jabuticaba, ou cama de gato que hoje ou amanhã vai explodir, queiramos ou não.

E me pergunto também que autoridade moral ou que sabedoria especial terá o mercado financeiro internacional além de sua concupiscência e seu desprezo pelo real desenvolvimento econômico de qualquer país.

Tal como o mercadinho da Sra. Katástrofe, o mercado financeiro internacional nos levou a uma crise de cupidez no ano de 2008 da qual ainda não nos recuperamos. Com a mesma engenhosidade do Sr. Aécio, o espírito animal e os diretores dos grande bancos inventaram maliciosas cadernetas de enganar trouxas e destruiram as hipotecas de toda classe média americana, faliram bancos de pequenas poupanças e socializaram os prejuízos por todos os países de mundo. Este mesmo mercado entra em convulsões e comichões quando se fala em dar um sentido social ao uso do orçamento nacional. Curiosamente, a expressão desenvolvimento econômico sumiu do mapa e ingressou no museu das ideias perdidas. Hoje, o que se distribui para o eleitorado é a migalha de um projeto social improvisado de olho na boca sequiosa da urna. Projeto sério de desenvolvimento fica pendurado como aqueles velhos avisos de “fiado só amanhã”. E mercado e populismo são irmãos xifópagos.

Assim como Trump teve a ignominia de lembrar ter sido a Casa Branca um bom investimento imobiliário e de transformar seus jardins no palco do patusco espetáculo de seu discurso de candidato à reeleição, enquanto milicianos brancos caçavam negros com rifles nas ruas das cidades, assim também se aproxima a hora em que mentira e usurpação receberão o repúdio e a rejeição a fermentar em nossas vontade e determinação de homens livres, sabedores dos altos custos de uma devoção a mentes feridas por narcisismos doentios.

Nosso destino depende de um simples gesto de inteligência e de firme convicção . Como disse Obama: é a Democracia que está em jogo.

E contra ela, Trump já rolou os dados da calhordice, da mentira e do Estado autoritário. Populismo policial a serviço de uma família. Que pretende espalhar como Pandemia.

*Embaixador aposentado