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Mulheres que lutam contra hackers

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Como se já não bastasse ter de combater o feminicídio, a violência doméstica, o machismo no ambiente de trabalho e em outros locais do dia a dia, agora, em plena pandemia, as mulheres estão tendo de lidar com ataques de hackers de extrema-direita. Esse tipo de ação covarde – sim, porque os agressores nunca se identificam – vem sempre carregada de misoginia e acentuada brutalidade.

Apenas na última semana, três ataques do tipo foram noticiados pela mídia, um no Rio de Janeiro e dois em São Paulo. O mais recente teve como alvo a deputada Renata Souza, pré-candidata à Prefeitura do Rio pelo PSOL. Ela fazia uma live na noite desta quinta-feira (20), com a participação de mais de quinhentas pessoas, quando foram inseridas na transmissão imagens que não estavam no roteiro do evento virtual. Apesar da invasão, a reunião remota continuou, acompanhada de manifestações favoráveis à deputada nas redes sociais. A própria Renata, em reação ao ataque, escreveu em uma postagem que os hackers não conseguiram derrubar o evento e que os agressores não toleram a “esperança e ousadia” que traz consigo.

Aliás, a resistência histórica das mulheres irrompeu pelos três cenários do teatro do absurdo aqui citados. As mulheres que derramaram coragem sobre os hackers covardes são as mesmas mulheres de luta que seguem a escrever a história. As mesmas mulheres que, no final do século XVIII, foram as primeiras a se agrupar e a marchar sobre Versalhes, antecedendo a Revolução Francesa, como cita Maria Rita Kehl no livro Deslocamentos do feminino; as mesmas mulheres que foram às ruas de Nova York em março de 1908 por melhores condições de trabalho, como descreve Angela Davis no livro Mulheres, Raça e Classe; as mesmas mulheres que, em 1910, promoveram jornadas de manifestações na Alemanha, lideradas pela feminista marxista Clara Zetkin, ao lado de Rosa Luxembrugo; as mesmas mulheres que fizeram manifestações contra a fome na Rússia, em 1917 e reforçaram a deflagração da Revolução Comunista; as mesmas mulheres que organizaram aqui no Brasil, em março último, pouco antes do isolamento social por causa da pandemia, a Jornada Nacional de Lutas das Mulheres do MST, que mobilizou milhares de brasileiras e brasileiros em 14 estados, em defesa da terra e da agricultura, alvos da política degradante do atual (des)governo.

A resistência histórica das mulheres de luta encheu de música e poesia a transmissão ao vivo da vereadora paulistana Juliana Cardoso, do PT, também alvo de hackers no último sábado, quando mais de cem mulheres estavam reunidas em um encontro virtual. As agressões tiveram tom machista e misógino, com xingamentos e cenas ofensivas em idioma estrangeiro. O evento precisou ser interrompido e reiniciado com o cumprimento de novas medidas de segurança. O que veio em seguida foi um banho de energia, força e beleza: uma centena de mulheres a cantar a mesma música, em centenas de telas de dispositivos espalhados por diferentes regiões da capital paulista. Depois da música veio a poesia. Depois da poesia, as falas de mulheres que transformam e constroem.

Outro alvo foi uma palestra virtual da promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Valéria Scarance, especializada em gênero e violência contra a mulher. Ela falava sobre violação dos direitos das mulheres, quando a reunião foi invadida por usuários anônimos que compartilharam conteúdos pornográficos e ofenderam as cerca de sessenta participantes do evento. A palestra também precisou ser interrompida e recomeçada em um endereço privado. “Foi bem pesado”, disse a promotora à imprensa.

Os três casos foram denunciados formalmente. Aguardemos o desenrolar das investigações. São fatos que demonstram, mais uma vez, que as mulheres permanecem na mira dos ataques machistas, agora escondidos atrás de hackers. E comprovam, mais uma vez também, que mulheres de luta resistem. Com força, raça, gana. Com manha, graça e sonho. Sempre. Como cantou Milton.

Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.