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Às armas

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Sábado passado assisti à live do Caetano Veloso. De boa-fé, pouco antes enviei mensagem a um amigo lembrando-o do show, certo de praticar uma boa ação aos ouvidos alheios. É verdade que, nos bares da juventude, ao escutar canções do compositor baiano, esse amigo era tomado por certa melancolia, fosse pelo tema da obra, solidão ou simples bebedeira. Para minha surpresa, recebi uma resposta mal-educada e me lembrei da ira e medo a assaltar-nos quando a conta vinha errada e o dinheiro era contado.

Meu amigo, assim como muitos brasileiros, está com os nervos à flor da pele. “Como, em época de pandemia, você me manda uma mensagem tarde da noite?” – ele disse (tive de mudar algumas palavras). “Pensei que alguém tinha morrido, nem no velório poderia ir!” O clima no país é de guerra e o medo é um agente poderoso. A inoperância e incapacidade dos poderes públicos em nível federal, estadual e municipal de prover algum senso de segurança nos faz coletivamente fracos. Resta a cada um, no plano individual, tomar suas providências. E descrentes de uma ação governamental coordenada para combater a covid-19, um inimigo global e invisível, reagimos à sombra de nós mesmos.

Ao contrário da morte, aceitável, o vulto da finitude é intolerável. Talvez por isso, apesar da pilha de corpos, notícias de política e economia tenham voltado às manchetes dos principais veículos de comunicação. Não à toa: dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) e divulgados pelo IBGE mostram que, no país, quase nove milhões de pessoas perderam seus postos de trabalho no segundo trimestre, comparativamente a janeiro a março de 2020. A taxa de desemprego no período subiu para 13,3% e o número de pessoas ocupadas é de pouco mais de oitenta milhões, o menor da série histórica iniciada em 2012.

Rompida a barreira das cem mil vidas perdidas, o Ministro da Economia, ao tentar aprovar no Congresso a criação da CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços) e, na esteira da reforma tributária proposta, onerar uma série de produtos antes isentos de PIS / Pasep e Cofins, fecha os olhos para o desemprego crescente. Não é difícil imaginar que o valor desse imposto será repassado ao preço. Preço maior, venda menor: mais demissão à vista.

O visionário Guedes parece mais preocupado com o aumento da arrecadação do governo do que com o bolso dos seus verdadeiros patrões, os eleitores. Difícil imaginar, aliás, o segundo homem na hierarquia do Executivo prestando contas ao cidadão comum. A que se destina seu trabalho? Servir a quem paga seu salário? Melhor encarar os brasileiros como contribuintes, ou clientes, de quem sempre se pode tirar mais um pouco. Afinal, se cada um visa apenas o melhor para si, é sua obrigação, como funcionário “público”?, proteger a saúde financeira da máquina estatal.

Neste embate travado em que contribuintes, pandemia e opositores são tratados como adversários, parece lógica a proposta do governo federal de cercar-se de militares. Tomado de espírito beligerante, conta com a formação dos especialistas em combate para eliminar o inimigo. A julgar pelo resultado na área da Saúde, por exemplo, o vírus estrangeiro caminha a passos largos para ocupar todo o nosso território.

Num contra-ataque eficiente, talvez o presidente e seus auxiliares pudessem enfrentar alguns dos seus inimigos sob a ótica da palavra “crise” em vez de “guerra”. Numa guerra, canhões, tanques e revólveres são protagonistas. Numa crise, a arma é o pensamento. Resta saber se crise e pensamento são palavras toleráveis aos integrantes do Palácio de Planalto e adjacências. Em caso afirmativo, em que medida atendem aos seus interesses?

Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.