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Máscaras

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Terça-feira foi um dia lindo no Rio. Fazia sol de verão e quando bate este tipo de sol, o Rio transforma suas montanhas e rochas em espelhos a nos ofuscar de tanta beleza. Quando dei por mim estava a flanar ali pelos lados de Ipanema, bordejando a Lagoa, onde havia mães empurrando carrinhos de bebês e vendedores de côco gelado a saciar a sede de jovens maratonistas em alegre balbúrdia serena. Flexões audaciosas pareciam vertiginosas para minhas dores lombares ou cervicais e me faziam tentar endireitar a postura com a dignidade própria dos vencidos, mas não derrotados.

Subi a passos cautelosos, como convém, a rua Vinicius de Moraes e me lembrei como ele e Tom Jobim fizeram deste bairro uma referência internacional com a bela “Garota de Ipanema”. Uma vez, encontrei Tom Jobim na residência de meu chefe na Missão do Brasil na ONU, embaixador Paulo Nogueira Batista, de quem Tom era amigo e às vezes lá dava uma "canja“ num piano Steinwey meia cauda. Numa dessas noites, também de um verão sufocante em Nova York, Tom me surpreendeu no pequeno jardim daquela magnífica casa na East 79st.

Tom vinha fumar um charuto e generosamente me ofereceu um de seus puros, certamente presente de seus admiradores cubanos. Ficamos amigos de infância. Me lembro que ele suava, naquele calor gosmoso e começou o papo me perguntando se eu também não achava o verão em Nova York uma "falta de caráter." Daí passamos para um desfile das generosidades do Rio e ele me falou com grande erudição e sem a menor empáfia das árvores e dos pássaros da cidade.

Perguntei, depois de já estarmos no meio das baforadas do Robusto, o que ele achava do Sinatra de quem era e sou fã de carteirinha. Ele só me disse uma coisa: que Francis - como ele o chamava - havia ensaiado apenas uma vez, com Tom no violão, a batida da bossa-nova e fez, em menos de uma semana, aquele belíssimo disco que levou a Garota de Ipanema para o sucesso internacional.

Mas, me desvio do assunto. Ali, na Praça Nossa Senhora da Paz, neste furibundo ano de 2020, senti alguma coisa quase imperceptível, um incômodo indefinido, uma sensação de opressão e de algo inefável haver sido roubado da atmosfera do Rio e dar a ela, para ficar nos tempos da Bossa-Nova, um certo tom de “ Balada Triste”, escorregadia e derrapante como a voz de Agostinho dos Santos.

E, talvez, num sopro de Vinicius ao ouvido, percebi que não havia mais sorrisos no Rio. As gentes passavam aparentemente sem maiores mudanças. As garotas continuavam ipanemíssimas, mas, com máscaras antipragas, já não era possível ver-lhes o sorriso que sempre exibem não sei se pelo prazer de olhar o Rio ou se pela vaidade de se sentirem apreciadas pelos passantes com elas a cruzar.

Verdade, se podem ver olhos. A maioria castanhos. Uns poucos verdes. Outros, azuis como águas marinhas. Que falta, porém, fazem os sorrisos.

E como num fotograma em preto e branco, me recordei das quintas-feiras da minha pré-adolescência, quando as aulas terminavam mais cedo e nós, de calça e camisa cáqui, elas, de saias plissadas azul e de blusas brancas, saíamos a tomar um sorvete de frutas no Moraes. E ficávamos a lamber sorvetes de fruta de conde ou de goiaba a conversar com os olhos e a entender de sorrisos. Uma linguagem plena de descaminhos, com uma gramática irregular e uma sintaxe complexa em que às vezes o sorriso dizia que sim e o olhar dizia talvez e se passava a tarde num jogo cauteloso e carinhoso da criptografia do coração. E depois, anos depois, doutorandos nesta linguagem que Machado de Assis nos educou com a professora Capitu, adentrávamos o Zepellin para, entre chopes, sorrisos e às vezes risadas nos deixar levar pelos mares plácidos pré-64.

Hoje nessas pandemias que nos afligem corpo e alma erradicou-se o sorriso e há um fenômeno estranho a ocorrer. Temos senhores da morte a condenar o uso da máscara por inútil, fruto e exageros da oposição. Curiosamente, quando nos falam sobre os destinos de nosso país se vestem de máscaras diversas, como nas tragédias dos teatros em que homens, se vestem de lobos, de chacais e de serpentes.

No Brasil de hoje as máscaras vestem os justos e desnudam os pobres de espírito. E caminhamos pelas ruas numa solidariedade do olhar a perceber a sensível sombra de um sombrio sorriso.

*Embaixador aposentado