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A face legitimada do medo

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Poderia iniciar este texto falando da violência desde os tempos de Caim e Abel. Mas, além de clichê é pouco inovador e um tanto óbvio. Interessante seria mencionar um clássico da sétima arte, Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e é o que farei para usar como ponte a Slavoj Zizek (filósofo esloveno, nascido na antiga Iugoslávia).

No filme dirigido por Kubrik, de 1971, é possível observar várias cenas de violência, mas a que mais atrai a nossa atenção é a sistêmica. Aquela perpetrada pelo Estado e que não percebemos porque há certa legitimação no ato.

A personagem principal de Laranja Mecânica é cooptada para servir de exemplo. Convido-vos a fazer uma transposição para o nosso tempo. Para quem não assistiu ao clássico, fica a indicação.

O sistema é cruel de diversas maneiras. O racismo é uma das faces na qual a violência sistêmica se manifesta, ou seja, aquela que é implementada por um conjunto de normas, ditas morais, por imposição do Estado ou da própria sociedade .

Vivemos há algum tempo - e, hoje, ainda mais - no que o filósofo esloveno Slavoj Zizek chama de “a política do medo”. O conhecido jargão nosso de cada dia, “sabe com quem está falando?”, ganhou uma ramificação ou um subitem, “cidadão não!”, que nada mais é que uma legitimidade tosca presente na monstruosidade do “homem de bem” para subjugar àqueles que cumprem seu dever e que são considerados por esses mesmos “cidadãos” ou “homens de bem” (o mestiço de sangue puro) sub-raça ou subproduto.

Para o filósofo Zizek, a sub-raça é o outro e ele só é aceitável à medida em que não interfira ou frequente o meu “locus social”. Sua presença não pode interferir no meu “modus vivendi”. É apenas aceitável. Sou capaz de suportar a existência desse outro se ele não aparece ou não chega perto de mim. Posso até suportá-lo ou respeitá-lo como ser (não necessariamente humano), pois o que quero do outro é apenas a distância.

Assim, se a antipatia é uma doença (como diriam os Titãs em “O Pulso”) e esse distanciamento proveniente da anomia é uma das formas de manifestação da violência, posso dizer que a antipatia também é. Não percebeu? O que por acaso seriam os condomínios cercados, os subúrbios e os projetos de higienização social do Estado?

Os recentes comportamentos, divulgados pela mídia, tanto da mulher do engenheiro, no Rio, dele próprio e do desembargador, em Santos (SP), foram lamentáveis na medida do humano altruísta, aquele que consegue sentir empatia (que está também atrelada ao respeito) pelo seu próximo. Mas, ao mesmo tempo que é repulsivo, não há nada mais normal em nossa sociedade atual, pois todas essas clivagens são fruto da política do medo. Política essa na qual é preciso impor o meu “status quo” para que não seja surpreendido pelas regras escritas do sistema, ou ainda pior, para que eu não seja moralmente igualado ao um criminoso. É apenas através do medo que imponho a minha vontade e satisfaço os meus doces deletérios.

A figura do “homem de bem”, desde remotos tempos foi criada pelo medo e por uma perversão da moral cristã.

Ao invés do “ama teu próximo como a ti mesmo”, a máxima parece ser “teme ao teu próximo como a ti mesmo”. O medo paralisa, pune, espanta e se impõe.

Mas, na era da comunicação instantânea, o medo, de quando em vez, é uma mentira e, como toda moral devidamente ilibada, nenhuma mentira fica encoberta.

O temor pode ser (e quase sempre o é) produto da violência, que brota no homem e é transportada para a sociedade violenta. Que, sempre cresce (a História é testemunha), mas com toda vênia a Humberto Kessinger (ex vocalista dos Engenheiros do Hawaii), “ascenção e queda são duas faces da mesma moeda”.

*Professor de Filosofia e Sociologia.