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Discutindo a relação (DR)

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A sociedade brasileira saiu da apatia e enfrenta uma DR com o governo, com as ideologias e consigo mesma. Já não era sem tempo. Passamos muitas luas entre petrificados e quase catatônicos diante de tanta maleita a desabar sobre nossas cabeças.

Os primeiros movimentos, quase imperceptíveis, se concentraram num sentimento difuso de sufocação e de desgosto a cada dia mais incômodo com a certeza de que nossa sina só poderia ser atribuída a nós mesmos que, livres e alegremente, havíamos eleito um pastor camaleônico, que dia sim pinta um futuro brilhante e dia não acalenta uma noite de horrores.

Um zigue-zague estonteante em que não sabíamos afinal para que estranhas sendas nos conduzia uma retórica tosca e ambivalente em que se dava um giro de cento e oitenta degraus na escalada que havíamos suposto ser uma sociedade e um país menos corrupto e uma classe política menos egoísta e patrimonialista.

Foi-nos entrando pele adentro uma irredutível e crescente sensação de estranhamento diante de atitudes ameaçadoras identificadas com ideologia que não abraçamos como povo ou sociedade e nem sequer nos havia sido exposta num processo eleitoral tisnado de surtos emocionais, que, à época, atribuímos a sentimento de revanchismo diante de tantos mensalões, lava-jatos e outros exorcismos a que fomos submetidos.

Em meses, não muitos no calendário gregoriano, mas por centúrias em nossas vivências emocionais, foi-se desenhando diante de nós um país perigoso a nos colocar na perspectiva cada vez mais sombria de que caminhávamos para a decapitação da democracia não como mero assistentes, mas como condôminos de uma rasteira e rastaquera ideologia que não subscrevemos nem sequer compreendemos. Sabíamos apenas ser parida por um bando interessado em fazer de nosso país uma Filipinas, uma Hungria ou, na melhor das hipóteses, uma Rússia à putanesca.

Nessa contradança, a primeira torre a desabar foi a de nossa política externa que, pela voz de seu microgerente, nos juntou umbilicalmente não aos Estados Unidos, mas ao trumpismo, nova forma de autoritarismo delirantemente apregoada por nosso nanogerente como uma redenção do ocidente judaico-cristão. E nos perfilamos diante de um Israel controvertido e pensamos transferir nossa embaixada para Jerusalém, cruzamento dos monoteísmos. Tudo isso nos primeiros quinze minutos da pelada.

Rasgamos nossos compromissos internacionais sobre meio ambiente, alienamos numa só tacada investidores e admiradores de nossa política consagrada e respeitada desde a Rio-92. Uma costura brilhante do Itamaraty que nos colocou no centro de toda e qualquer deliberação internacional sobre meio ambiente a partir daí. Hoje, somos conhecidos por nossa política de dizimação de florestas e índios. Um desmonte que deverá ser objeto de estudo nas academias diplomáticas como estratagema do absurdo. Tanto ou mais do que os estudos sobre a estupidez estratégica de Hitler ao decidir invadir a União Soviética.

Quando aqui chegou, a Pandemia encontrou terreno adubado para uma disseminação descontrolada em parte porque dela se resolveu debochar na linha do trumpismo, que fez de seu país o mais derrotado pelo vírus, apesar da empáfia de Trump sempre a apontar o Brasil como país a não ser imitado. Nós que não ocupamos senão o segundo lugar. Medalha de lata.

E a Pandemia nos escancara a dura realidade. Temos uma economia de faz de conta em que nosso renomado posto Ipiranga nos promete uma entrada de capitais ávidos para nos transformar num país superdesenvolvido. E nos encanta com suas fantasias e delírios de uma sociedade abundante e fraterna. Incapaz de reconhecer que os poucos mugidos de movimento econômico nesses dias decorrem do auxílio emergencial que a todo custo pretende acabar. Uma fera acuada.

E a partir daí teve início a DR. Economistas de diferentes correntes de pensamento deixam claro que o carnaval acabou e que persistir nesta política econômica nos levará de pires na mão aos credores internacionais de que já nos havíamos livrado faz tempo. Mas, nosso posto Ipiranga insiste em mágicas surradas em que dá nomes novos a velhas poções. E se estrebucha quando se levanta a hipótese de uma reforma tributária realmente progressiva.

Nossa política do meio ambiente recebeu um xeque-mate de ex-ministros do meio ambiente, dentre eles, Rubens Ricupero que na Rio-92 foi o grande negociador de um mecanismo financiador para o meio ambiente, tarefa considerada impossível na época. Hoje, são os investidores internacionais que nos fecham acesso a fundos e bancos diante de nossa política canhestra e isolada.

E nosso Ministério da Saúde em plena Pandemia fez da saúde uma Pandemia de esconde-esconde e jogou a sociedade na mais profunda inquietação. Tentou barafundar números. Fazê-los mentir mais do que nunca. Propôs à Fiocruz, órgão de excelência universal, que se aparvalhasse recomendando o uso de um remédio que não cura, mas pode matar. Uma destruição sistemática de nossa boa imagem no exterior. Nosso ministro da Educação evadiu-se. Ainda bem, para o bem de todos e felicidade geral da nação. Foi-se. Foice.

E na DR a esmagadora maioria da sociedade brasileira rejeita as manobras de estreitamento do Estado de Direito no Brasil e repudia as tentativas autoritárias dirigidas por uma minoria à Democracia brasileira. Esta, a temática de fundo e substância da DR que a sociedade nos convida todos a participar.

E a mensagem nela implícita não poderia ser mais eloquente: a nenhum gestor público, eleito ou não, foi dado qualquer mandato de sequer arranhar nosso compromisso com as liberdades individuais, a propriedade privada, o direito ao trabalho, a saúde universal e a educação livre e igualitariamente aberta a todos os brasileiros.

E sobretudo, consensualmente reafirma ser, como de fato e de jure sempre foi, crime de lesa-pátria buscar na Constituição uma leitura que nela sustente qualquer tipo de apoio, armado ou pacifico, a todo regime autoritário que se pretenda instalar no Brasil. Em nome de Deus ou de Belzebu.

Na DR os cidadãos tatearam a real dimensão da Pandemia, de ramificações a se desenrolarem como novelo de desalinhos podres. E potencialmente inenarráveis.

*Embaixador aposentado