Na sociedade imaginada como máquina social, dirigentes formulam com cérebros os gestos que trabalhadores executam com as mãos. Segundo esta máquina social, dirigentes de regimes totalitários do século XX trocavam mentiras e negociavam entre si informações falsas.
A democracia busca inventar um caminho estreito que dê conta de transformações que o desenvolvimento do saber impõe à política. Entregando aos especialistas escolhas que antes confiávamos à política, queremos estar seguros de que realizamos uma transferência legítima.
Em vários momentos da vida, o cidadão passou a se ver obrigado a confiar, para suas escolhas, em grandes organizações ou empresas. Quer confie o controle do saber a uma autoridade política, ou encarregue a concorrência do mercado, o cidadão se encontra em inferioridade.
O desenvolvimento de instâncias independentes é crucial para o País. Instâncias independentes garantem a integridade do mercado financeiro; conhecem em detalhe setores de telecomunicações, energia e transportes; asseguram a qualidade sanitária de um produto. São maneiras de restabelecer a segurança e o equilíbrio que o mercado não consegue mais garantir, na era dos grandes grupos econômicos.
Daí que hoje o uso que se faz de um saber, por definição sempre incompleto, deve levar em consideração os valores da sociedade. Toda norma integra uma avaliação de risco; esta não pode apenas técnica, pois o custo do erro se mede pelas perturbações sociais que provocar.
Na pandemia do coronavírus, a ciência não impõe nenhuma conclusão definitiva, põe em evidência riscos envolvidos em tratamentos. O debate público há de ser suficientemente aberto, para que o saber dos especialistas não asfixie nossa percepção crítica do conhecimento.
Num mundo onde a porção do saber aumentou às expensas da porção da política, a característica complexa do saber deverá ser sempre preservada.
Engenheiro, é autor de "Por Inteiro"(Editora Multifoco, 2019)